Reflexões sobre o divórcio nas igrejas evangélicas

Reflexões sobre o divórcio nas igrejas evangélicas

No mundo colonial, a pessoa escravizada passava por uma morte social. Ao ser privada de sua liberdade, separada de sua cultura, de seu idioma, das pessoas com as quais convivia, a pessoa via-se privada de mundo. O Novo Mundo, como eram conhecidas essas terras para onde foram trazidas milhões e milhões de pessoas nessas condições, não significava nada de bom. Se para uma pequena minoria as promessas de prosperidade lhes animavam o espírito, para a maioria que vinha amontada nos porões dos navios era a morte em vida.

O divórcio dentro da igreja pode significar algo parecido. Com minhas palavras não quero ser desrespeitoso com o sofrimento daqueles que passaram por uma experiência tão nefasta. Incomparável. Apenas vem à lembrança esse fato porque o divórcio é realmente um tabu em muitas igrejas brasileiras. 

Paulo nos chama a sermos escravos de Cristo. Esse é um ponto sublinhado na obra O tempo que resta, na qual Giorgio Agamben faz um comentário sobre a Carta aos romanos. Como escravos (doulos) somos chamados a experimentar esse mundo de modo diferente. Estamos mortos para o mundo, pois ganhamos uma nova vida em Cristo. O chamado que recebemos é uma vocação, algo que devemos desenvolver durante toda nossa vida. Toda nossa existência passa a ser ressignificada a partir do instante no qual ouvimos e aceitamos esse chamado.

Essa nova vida é, em grande parte, materializada pelo convívio na igreja. É lá que o crente encontra ambiente para ressignificar sua existência. Entre novos amigos (ou irmãos), a pessoa tem a oportunidade de construir essa nova identidade. Em muitos casos é na igreja que a pessoa se casa e forma sua família. Há toda uma vivência que a liga com aquela comunidade. Suas experiências, seus laços de amizade, muito de seu ser no mundo está ligado à igreja, esse novo mundo que foi tornado seu pela aceitação do sacrifício de Cristo. Quando a pessoa cogita um divórcio, dependendo da igreja da qual faz parte, ela talvez deva estar preparada para uma morte social. Os encontros semanais com amigos e pessoas queridas, as histórias vivenciadas, as memórias compartilhadas, tudo isso sofre um abalo grande. Algumas pessoas até são excluídas de igrejas depois de se divorciarem. 

No livro Pecadores que dizem sim, o autor conta um relato de uma mulher que foi casada por mais de 40 anos com um marido que a desprezava. Ele era um pastor e precisava estar casado para manter sua carreira ministerial. Ele disse isso a ela na lua de mel! O livro apresenta esse relato em um contexto de reflexão sobre o conceito de misericórdia, sobre nossa capacidade de exercer o perdão dentro do casamento. Fico me perguntando: será que Cristo gostaria de submeter alguém a uma situação como essa? Será que persistir em uma relação como essa pode ser usado como um bom exemplo de fé? Parece difícil responder sim. No entanto, tendo em conta que esse livro é usado para aconselhar casais em dificuldades, podemos perceber o peso que o divórcio pode representar para a vida de uma pessoa que está em uma igreja evangélica.

*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.


João Barros é evangélico há mais de 20 anos. Doutor em Filosofia e doutor em Ciências Sociais (UBA-AR), atualmente leciona no Programa de Pós-graduação em Integração Contemporânea da América Latina (PPGICAL) e no curso de Ciência Política e Sociologia da UNILA. É autor de Poder pastoral e cuidado de si em Foucault (2020) e Biopolítica no Brasil – uma ontologia do presente (2022). Também coordena o projeto Evangélicos e política na América Latina. Contato: joao[ponto]barros@unila[ponto]edu[ponto]br .