140 anos de Cornélio Pires, o presbiteriano fundador da música sertaneja

140 anos de Cornélio Pires, o presbiteriano fundador da música sertaneja

Há certamente muitas maneiras de se pensar a relação entre a cultura brasileira, em seu sentido lato, e os evangélicos, em suas múltiplas manifestações. Há algum tempo tenho insistido nas dicas metodológicas do professor e intelectual público Luiz Antonio Simas: é preciso pensar a cultura brasileira, em sua dinamicidade, desde as suas frestas através das quais percebemos as misturas, os encontros e os conflitos. Contrariando as noções de estabilidade, podemos observar o que se revela nos múltiplos Brasis e que nos dá uma chave de braço, torcendo nossas pretensões essencialistas. Na coluna de hoje, gostaria de lançar o olhar através de uma fresta que possui nome próprio e neste ano completa 140 anos de nascimento: o paulista Cornélio Pires.

Nascido em 1884, na cidade de Tietê, São Paulo, Cornélio Pires cresceu em um ambiente familiar dividido entre a fé católica e a pertença à Igreja Presbiteriana do Brasil. Inicialmente influenciado por sua família, aderiu ao presbiterianismo durante grande parte de sua vida, mas mais tarde converteu-se ao espiritismo kardecista. Filho de bandeirantes e um viajante ávido, Cornélio Pires explorou diversas regiões, acumulando e catalogando uma rica coleção de histórias da vida rural. Essas experiências resultaram em dezenas de livros que se destacam como referências sobre a vida caipira, inclusive mencionados por Antonio Candido em sua obra seminal "Os parceiros do Rio Bonito" (1964).

Diz a mitologia em torno da fundação da música sertaneja no Brasil que Cornélio Pires é seu grande patrono. A história não nos deixa enganar: os primeiros discos gravados por “caipiras autênticos” no Brasil, no final da década de 20, foram patrocinados por Pires sob a chancela da gravadora Columbia. Imagine só um protestante (e presbiteriano) como pai fundador daquela que é hoje a música mais escutada no Brasil? Pois é!

Esse gesto de fundação tem uma história preliminar bastante interessante. Em 1910, no teatro do Colégio Mackenzie, em São Paulo, pertencente à Igreja Presbiteriana do Brasil, ocorreu uma apresentação um tanto quanto esquisita e incomum para a época: um grupo de caipiras, originários do interior paulista, subiu ao palco do teatro para mostrar ao público os seus catiretês e cururus, além das músicas apresentadas por duplas com seus sotaques, trajes e ornamentos típicos da vida rural à época.

Os discos lançados sob a batuta de Cornélio Pires apresentavam causos narrados pelo próprio e modas de viola de artistas como Arlindo Santana, Mariano e Caçula, Antônio Godoy, Luizinho, Bico Doce (Raul Torres), Sebastião Arruda, Zé Messias e outros. Como afirma Jairo Severiano em sua “Uma história da música popular brasileira”, grande parte desses artistas veio da região de Piracicaba (SP). As coleções lançadas pela Columbia - um verdadeiro sucesso - foram responsáveis pela apresentação massiva de aspectos da vida rural até então não tão conhecidos pelos moradores das capitais.

A história nos mostra que as catiras - ou cateretês - apresentados ao público da “cidade grande” tem origens indígena e afro-brasileira, sendo apropriadas pelos padres jesuítas, sobretudo José de Anchieta. Cornélio Pires, como nos diz a dissertação de Matheus Henrique Pinheiro Ribeiro (1), era bem consciente do catolicismo popular (e suas misturas) impregnado nas músicas caipiras. Em nenhum momento isso lhe pareceu um problema de ordem religiosa - que bom!

Há muito a se dizer sobre a vida e obra de Cornélio Pires. Cheia de contradições, seus atos em vida nos mostram que a pesquisa sobre a relação entre a cultura brasileira e os evangélicos pode ser feita desde as margens, sem a necessidade de estabelecer fronteiras de antemão. Os protestantes brasileiros, em sua inescapável multiplicidade, abriram - e continuam a abrir - brechas de sociabilidade e invenção de mundo que podem ser melhor percebidas por nós. Que olhemos através das frestas.

(1) RIBEIRO, Matheus Henrique Pinheiro. O pioneiro Cornélio Pires do regional ao nacional. 2019. 110 f. Dissertação (Mestrado em Educação, Arte e História da Cultura) - Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2019.


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Arthur Martins é graduado em Filosofia (UCB) e mestrando em Ciências Sociais (PPCIS/UERJ), onde desenvolve pesquisa sobre cultura, música popular e religião. É compositor, músico e cantor do Rio