A defesa da família como estratégia eleitoral

O mundo da pós-verdade, da narrativa e do relativismo sempre foi oficialmente rejeitado por parte significativa dos evangélicos, sobretudo por aqueles cuja tradição teológica reconhece no evangelho de João e no seu conceito de verdade uma bandeira discursiva fundamental. “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” – assim, João 8.32 alude ao desvelamento divino, à aproximação de Deus dos seres humanos que redunda em sua transformação.

Com a Reforma Protestante, a verdade se tornou para muitos evangélicos a defesa do conjunto doutrinário que se opunha ao catolicismo. No catolicismo mais tradicional, a verdade eclodia de um Papa e de um magistério. Sem Papa oficial e sem magistério, as Igrejas Protestantes confiavam na infalibilidade e inerrância da Bíblia, e na centralidade de Cristo como caminhos para a salvação.

A ideia evangélica de família desbaratou em grande medida a radicalidade católica do casamento sacramental, mas colocou em seu lugar a ideia de que a família é sagrada. Daí, a interpretação exótica de Atos 16.31: “Crê no Senhor Jesus, e será salvo tu e a tua casa”. Essas palavras ditas ao carcereiro de Filipos deixaram de ser a declaração da centralidade do homem no ambiente familiar do mundo romano do século I, e se tornaram a ideia da sacralidade da família, da extensão da salvação individual para a salvação familiar, responsável real pela expansão e fortalecimento do cristianismo desde os primórdios da Reforma.

A força da ideia de família evangélica, formada por marido, mulher e filhos, todos envolvidos com a Igreja, salvos, redimidos, se uniu, após a revolução francesa, à sacralização por muitos protestantes do casamento civil. Mais uma vez, uma leitura descontextualizada de Hebreus 13.4 (“honrado seja entre todos o leito sem mácula”) tornou obrigatório o casamento civil, a monogamia e a heterossexualidade, sendo os arranjos diferentes considerados por muitos maculadores da honra da família cristão.

Criou-se, a partir de então, a ideia de que o casamento é redentor para arranjos familiares informais, desde que o casamento seja celebrado entre um homem e uma mulher. Assim, fez-se uma extensão da salvação em Cristo para o indivíduo na salvação pelo casamento dos amasiados, dos jovens que tiveram relações sexuais especialmente se isso desencadeou uma gravidez, dos que não aguentam se relacionar sem praticarem sexo, etc. De acordo com esse tipo de leitura da bíblia, não há espaço para arranjos matrimoniais que não procriem “naturalmente”, e isso não pela compreensão católica de que é preciso crescer e se multiplicar (Gênesis 9.7), mas sim pela ideia de que toda homoafetividade é abominável.

Uma vez que o princípio “santo” é o casamento entre um homem e uma mulher, ambos virgens, que gerarão filhos e precisarão viver na Igreja para poderem dizer “eu e minha casa serviremos ao Senhor” (Josué 24.15), o ideal de família ensinado passou necessariamente pela promoção da abstinência sexual e pelos casamentos endógenos entre evangélicos, para evitar o jugo desigual (2 Coríntios 6.14-15). São arranjos que quando não se viabilizam, dada a sua radicalidade, exigem um instrumento que purifique aqueles cuja história não é de todo “coerente” com o ideário evangélico. Aí, entra o casamento civil: ele se tornou um tipo de sacramento redentivo para a família que se quer dizer evangélica, ou ao menos influenciada pelos evangélicos, mas não teve uma trajetória perfeita.

Bolsonaro, um deputado do baixo clero, radical, não construiu uma história coerente com tais valores evangélicos conservadores. Ainda assim, ele fez o que era necessário para se tornar aceito como uma esperança evangélica para a promoção da família sob a perspectiva desses grupos religiosos. Apesar de ele conviver maritalmente com a evangélica Michele Bolsonaro, e de ter uma filha com ela antes de os dois se casarem, eles foram unidos pelo matrimônio sob as bênçãos do pastor Silas Malafaia em 2013. Bolsonaro já vinha de outros dois casamentos, em que ele se tornou alvo de acusações de ameaças e agressões. Ainda que a irmã Michele já fosse cristã quando se relacionou afetivamente com o seu chefe quando trabalhava no seu gabinete, nada disso feriu a moral estrita dos evangélicos brasileiros. Para eles, o que importa é que eles “regularizaram a sua situação” – um milagre efetuado pelo casamento religioso com efeito civil.

Esse intrincado jogo posicional, feito de crenças e de reverberações da trajetória histórica de muitos evangélicos, dificilmente é bem-compreendido pelos que não são evangélicos. O idioleto da fé evangélica, porém, foi aprendido por Bolsonaro, que sabe usar as chaves certas para abrir os maiores grupos, tornando-os satélites de seu populismo fascistóide. Seus xingamentos, defesa da tortura, seu relacionamento duro e radical com seus filhos, sua devoção às armas: nada disso incomoda muitos evangélicos, porque ele aprendeu muito da alquimia evangélica, e lança mão eventualmente das substâncias capazes de transformá-lo no imaginário protestante de um homem desajeitado, violento e que parece estar o tempo todo em conflito em um herói da defesa da família tradicional. Obviamente, é notável que não há nada de tradicional na história dele com sua esposa, a partir de uma perspectiva da moral evangélica mais estrita. Mas ele conseguiu depurar sua trajetória ao se casar na igreja com Michele vestida de branco, tendo diante de si o rigoroso pastor Malafaia como celebrante.

As palavras de Bolsonaro sobre o relacionamento com Michele são exclarecedoras: “Resolvi então novamente buscar a felicidade e me aproximei dela. Deste relacionamento brotou um sentimento que me fez voltar aos tempos de cadete da Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), em Resende. Tudo passou a ser diferente, a esperança e a alegria de viver brotaram de tal forma que até hoje ainda me pergunto se tudo isso é verdade. Da nossa união nasceu aquilo que materializa uma família, onde o respeito e o amor nos deram nossa filha Laura".

Tudo é possível a Bolsonaro junto a grande parte dos evangélicos, desde que ele consiga se posicionar sob os auspícios da redenção. E ele, até aqui, soube fazer isso muito bem. Ele descobriu a natureza da ética evangélica. Afinal, é assim que muitos evangélicos leem Lucas 11.23: “Quem não está comigo, está contra mim; e aquele que comigo não colhe, espalha”. É a ética que transforma aqueles que seriam chamados de “amasiados” em uma família exemplar, que transforma falta de decoro em sinceridade. Transforma Bolsonaro em um estadista cristão evangélico, ainda que ele não faça jus a nenhum desses adjetivos.