A falsa e a verdadeira defesa da família

A precariedade das relações de trabalho defendida é o prego no caixão da unicidade familiar. Defender os direitos trabalhistas não é uma ideologia política, simplesmente, mas é a verdadeira luta de seguidores de Cristo.

A falsa e a verdadeira defesa da família

Desde os primeiros registros da Bíblia, Deus demonstra seu desejo e seu apreço por compartilhar de sua santa felicidade, alegria e amor gerando uma família na terra. Quando Deus fez o homem, Ele queria ter filhos com a sua imagem, com a sua natureza e com a sua vida. Deus queria ter uma grande família que expressasse na terra a sua glória e autoridade.

Então disse Deus: "Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança. Domine ele sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os animais grandes de toda a terra e sobre todos os pequenos animais que se movem rente ao chão" (Gênesis 1:26).

Por isso, Adão e Eva, de acordo com as metáforas da Bíblia, foram criados à imagem de Deus. Sabemos que cada ser vivo se reproduz segundo a sua própria espécie. Então, quando Adão e Eva se multiplicassem, reproduziriam filhos à imagem de Deus. Esta seria a família de Deus.

Mais adiante, o apóstolo Paulo, ao falar do propósito de Deus, diz:

"Sabemos que Deus age em todas as coisas para o bem daqueles que o amam, dos
que foram chamados de acordo com o seu propósito. Pois aqueles que de antemão conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos
" (Romanos 8:28,29).

Ou seja, Deus Pai quer uma grande família, onde Jesus, Seu filho é o primogênito dentre muitos irmãos (nós). Família é uma idealização de Deus e foi a forma que Ele instituiu para que os valores mais caros da humanidade pudessem ser reproduzidos, ensinados e, pelo exemplo, demonstrados de pai para filho.

"Que todas estas palavras que hoje lhe ordeno estejam em seu coração. Ensine-as com persistência a seus filhos. Converse sobre elas quando estiver sentado em casa, quando estiver andando pelo caminho, quando se deitar e quando se levantar" (Deuteronômio 6:6, 7).

Portanto, como verdadeiros cristãos, entendemos que a família jamais pode ser substituída pelo estado, sendo ela a célula principal de vida na sociedade. Da família que se extrai tudo o que teremos em nossa sociedade. Famílias ruins ou derrocadas, gera uma sociedade ruim e derrocada.
Uma das grandes diferenças da sociedade pós-revolução industrial foi o fato de todos os membros da família terem que trabalhar, incluindo as crianças e as mulheres. O jornal suíço "Anzeiger von Uster" publicou um anúncio em 1870 com o seguinte teor:

"Procura-se: duas famílias numerosas de trabalhadores, especialmente com crianças aptas ao trabalho, para trabalhar em uma fábrica de fiação".

A industrialização atravessou a Suíça e o mundo a todo vapor. No século XIX, houve uma mudança de cenário - dos campos para a fábrica - mas ainda se considerava a criança como força de trabalho. Aí começou a exploração real: em contraste com o trabalho na agricultura, na indústria não havia diferença se o trabalho era desempenhado por um adulto ou criança. Afinal, não era preciso muita força física para alimentar a máquina de tecelagem.

A partir desse ponto, podemos ver o que o capitalismo selvagem, sem regras, pode gerar, fazendo com que o tempo com a família se restringisse a chegar em casa e dormir pela profunda exaustão. Sem diálogo, sem afeto, sem o lazer que aumenta os laços e cria o ambiente sadio de crescimento humano e espiritual. A criança, principalmente, era tolhida de uma relação familiar para ter de ficar trabalhando por horas, sem descanso em uma fábrica. Veja um trecho de uma redação escolar de uma criança de 12 anos. Ele descreve seu cotidiano de operário, enfiando linhas nas agulhas dos teares, nos anos 1880:

"Assim que me levanto pela manhã, tenho que descer as escadas até o porão, para começar minha jornada. São mais ou menos cinco e meia da manhã. Aí eu tenho que enfiar as linhas nas agulhas dos teares até às sete horas e só então tomo o café-da-manhã. Depois volto ao trabalho até a hora de ir para a escola. Quando a escola termina, às onze horas, vou para casa e volto para as agulhas até às doze horas. Almoço e volto a trabalhar até pouco antes da uma da tarde. Retorno à escola, onde aprendo muitas coisas úteis. Quando chego em casa, trabalho até escurecer. Aí janto. Depois da janta, trabalho novamente até às dez da noite. Às vezes, quando o trabalho é urgente, fico até às onze da noite no porão. Depois digo aos meus pais boa noite e vou dormir. É assim todos os dias."

Nessa rotina descrita acima, não há como as relações familiares terem o efeito desejado por Deus quando da criação, no coração dEle, da família.
Como esperar que uma família possa ser e fazer aquilo que se espera dela com os pais e os filhos tendo que trabalhar por mais de 12 horas diárias, sem direito à folga semanal, férias remuneradas e ganhando um salário que os obrigue a colocar toda a família no trabalho? Sem tempo de qualidade, não existe família saudável. Não há ambiente de cuidado, conversa, brincadeira e carinho. E muito menos o tempo para os pais educarem seus filhos dentro dos valores cristãos que tanto desejamos ver reproduzidos neles. O sistema capitalista, sem nenhum freio, tira o tempo de qualidade de uma família.

Em 1943, no dia 1º de maio, foi promulgada a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), ainda sob um governo trabalhista de Vargas O país passava por uma fase de desenvolvimento: o número de trabalhadores aumentava e suas reivindicações também. Por isso, era necessário unificar as leis do trabalho. A CLT garantiu parte das demandas dos trabalhadores. Leis posteriores garantiriam também 13º salário, repouso semanal remunerado, dentre outras importantes conquistas. Com um piso salarial, com jornada de trabalho limitada a 8 horas diárias, descanso remunerado e férias anuais também remuneradas, quem que se favorecia disso? A família!

Diferentemente de muitos que se dizem defensores da família e usam essa pseudo defesa para angariar votos de maneira demagógica entre os cristãos, sem nenhum resultado prático para a vida das pessoas, nós, que somos hoje chamados de “comunistas”, “esquerdistas” e todo tipo de adjetivo que não significa nada pra nós, defendemos a família de maneira concreta e prática. Como? Defendendo justamente as medidas que irão fazer com que o pai de família, a mulher e toda a sua prole, possam ter tempo de qualidade uns com os outros. E quais medidas seriam essas?
Quando se defende uma jornada de trabalho reduzida sem redução salarial, férias, licença maternidade e folga remunerada, estamos defendendo a família, pois queremos que cada membro dessa essencial célula possa usufruir do relacionamento com os seus com tempo de qualidade. Uma família precisa poder sentar ao redor de uma mesa em um fim de semana para comer tranquilamente, conversar, rir e brincar. A família tem de ter condições de ter férias remuneradas e com o acréscimo do terço constitucional de férias para poderem viajar juntos, irem para retiros em suas igrejas, poderem acampar, ou seja, serem família.
A precariedade das relações de trabalho (uber, ifood, etc) defendida por aqueles que dizem defender a família, mas defendem o capitalismo mais selvagem de todos representado pelo liberalismo econômico mais perverso, é a pá de cal, o prego no caixão da unicidade familiar e das relações saudáveis no lar. Como uma família cristã poderá se reunir em sua igreja, uma vez por semana, todos juntos, se tiverem que trabalhar todos os dias, mais de 12 horas por dia, pois não são dignos de nenhum direito trabalhista por trabalharem em serviços cuja precariedade legal não permite esses direitos?
Enfim, defender os direitos trabalhistas não é uma ideologia política, simplesmente, mas é a verdadeira luta de seguidores de Cristo e de sua santa Palavra, que querem famílias fortes e saudáveis a fim de termos uma comunidade também forte e saudável. Queremos poder ensinar nossos filhos e para isso, precisamos de tempo e tempo de qualidade. Essa é a verdadeira defesa da família!

* Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.


Alexandre Gonçalves é pastor da Igreja de Deus  e colunista do The Intercept Brasil, é um dos líderes do grupo Cristãos Trabalhistas, ligado ao PDT. Foi ordenado desde 1994, tendo sido antes missionário atuando em Cuba com implantação de grupos caseiros e em comunidades carentes do Rio de Janeiro. Bacharel em teologia e direito e licenciado em letras, mas sua paixão é a teologia prática. Especializado em implantação de igrejas pelo SEMISUD em Quito, aprendeu os princípios do que chama de “teologia do pobre”. Além de pastor, é servidor público e diretor parlamentar do Sindicato dos Policiais e Servidores da Polícia Rodoviária Federal em Santa Catarina (SINPRF-SC). Siga-o pelo site Teologia do Pobre, pelo Twitter, YouTube e/ou pelo Instagram.