A guerra cultural e posicionamento do discípulo de Cristo
A guerra cultural tem sido uma dinâmica persistente em nossa sociedade atualmente. Não digo isso tendo em vista apenas o meio evangélico. Parece haver em nosso meio um ar pesado, uma atmosfera de perigo que é partilhada e percebida por boa parte da população. Por parte de alguns é como se dia a dia houvesse uma ameaça constante à moral e aos bons costumes. Esse risco não teria como exemplos as figuras tradicionalmente consideradas como desviantes: ladrões, bêbados, vagabundos. O perigo estaria agora dentro de nossas escolas e igrejas, ambientes antes considerados seguros.
Há autores que situam os primórdios dessa guerra cultural na obra do filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1789). Kant afirmou que Deus seria uma ideia da razão. Não seria possível conhecer Deus, provar se existe ou se não existe. Apenas ter fé. Ao não ser possível uma relação objetiva com Deus, tudo ficaria meio incerto, vacilante. O fundamento de nossas crenças e valores, de nosso próprio mundo como o percebemos, estaria, no fundo, pairando em uma nuvem. Kant teria aberto as portas para um liberalismo no campo teológico. Teria proporcionado as bases para uma abordagem não tão objetiva do texto bíblico.
Se falamos em guerra cultural, muito facilmente podemos lembrar de Foucault. Com uma célebre menção à morte do homem, ele teria posto a pá de cal em um cortejo fúnebre que havia iniciado com Nietzsche (1844-1900) ao falar da morte de Deus. Deus está morto, o homem está morto. O fundamento do mundo metafísico, de nossos valores mais caros, e o fundamento de uma concepção racionalista de mundo sofreram críticas muito severas e, para alguns, definitivas. Isso teria levado a uma disputa de narrativas. Já que não existiria uma verdade inquestionável, mas várias verdades em clima de disputa, vai no grito mesmo. As palavras de Foucault talvez encontrem eco aqui: produção de narrativas e disputas de poder nunca estiveram tão imbricadas.
No meio desse tiroteio está o crente. A pessoa que ainda carrega a compreensão de que a verdade da bíblia é uma só, não se sente muito à vontade em um mundo que, dizem, já carece de certezas. Isso pode levar a uma postura defensiva e, quando se sente ameaçada pela cultura, até mesmo ofensiva como em alguns casos.
Diante disso tudo, qual seria o papel do discípulo de Cristo? Ao invés de dar uma resposta, prefiro mencionar um exemplo. Certo dia estava em uma padaria com um amigo. Local muito agradável. Durante a conversa ele (que é adepto de outra religião) me pergunta: “você acredita que quem não acredita em Jesus Cristo vai para o inferno?” Pensei: perco o amigo ou perco a resposta? Nenhuma das duas coisas. Preferi citar Kant dizendo que Deus é uma ideia da razão, algo que não podemos provar nem negar. Jesus, como divindade (Jo 1.14), estaria na mesma condição. Se eu não posso provar nada daquilo que creio, qual o sentido de dizer a um amigo que ele irá para o inferno? Emendei: minhas orações são para que possamos conviver em harmonia e que o Espírito Santo nos conduza nessa caminhada. Sobre o mundo do porvir, depois vemos. Espero que estejamos todos partilhando do amor e da comunhão que nos são prometidos e que já disfrutamos aqui.
*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.
João Barros é evangélico há mais de 20 anos. Doutor em Filosofia e doutor em Ciências Sociais (UBA-AR), atualmente leciona no Programa de Pós-graduação em Integração Contemporânea da América Latina (PPGICAL) e no curso de Ciência Política e Sociologia da UNILA. É autor de Poder pastoral e cuidado de si em Foucault (2020) e Biopolítica no Brasil – uma ontologia do presente (2022). Também coordena o projeto Evangélicos e política na América Latina. Contato: joao[ponto]barros@unila[ponto]edu[ponto]br .