A ilusão de um Brasil cordial
Nós temos por hábito achar que Guerra Civil é coisa de estrangeiro. Se Guerra Civil é ataque a pessoas do mesmo país e local, então nós vivemos sistematicamente episódios de Guerra. Não utilizamos o termo porque queremos atenuar os horrores que permeiam nossa história e formação social.
Estamos num período de efervescência cultural. Para onde se olha no mundo temos agitações populares. A impressão que se dá é que estamos numa panela de pressão e a qualquer momento pode estourar uma guerra civil. Ânimos aflorados. Polarizações extremadas. Ideologias que se tornaram doutrinas religiosas. O ser humano gosta de viver no calor das emoções.
Mas queremos falar sobre o Brasil. Ah, esse país de encantos mil. Chamado por muitos estrangeiros de “paraíso na terra”. Não somos tão tolos assim para acreditar que esta terra é de gente cordial ou de gente que somente quer paz e amor. Há anos estamos numa cultura de ódio nestas terras tupiniquins.
A minha fala está pautada do ponto de vista histórico. Existe um debate em 1930 e nesta década foram produzidos três grandes livros da história do Brasil:
1. Casa Grande e Senzala (Gilberto Freire, 1900 – 1987)
2. Raízes do Brasil (Sérgio Buarque, 1902 – 1982)
3. Economia Brasileira (Caio Prado, 1907 – 1990)
Em 1936 quando Sérgio Buarque lançou seu livro “Raízes do Brasil”, tratou-se em especial no capítulo 5 um debate sobre o brasileiro ser um povo “cordial”. A característica desta cordialidade seria a generosidade, civilidade que todos os visitantes mencionavam e a hospitalidade no que diz respeito também ao nível de intimidade que o brasileiro tem – conhecer as pessoas e profissionais pelo nome.
Sérgio Buarque afirma que o Brasil é a terra do homem cordial. O que ele quis dizer é que somos a “terra do coração”. Nós agimos com o coração (emoções). Isto inclusive quando odiamos. Ou seja, nosso ódio também é cordial. É uma ação passional.
A década de trinta é marcada por um ódio profundo que afeta todos os países. A tentativa de fundar o comunismo no Brasil teve como resposta a mão de ferro do governo Vargas e a partir disto se explica o fechamento do Estado Novo.
O mundo ao redor era profundamente voltado ao ódio e o Brasil parecia distante da guerra no momento. Parecia uma ilha de um paraíso perdido. Portanto, comparado ao que ocorria no mundo – Alemanha nazista e a Itália fascista – o Brasil era um oásis.
Na verdade, estas coisas pareciam ocultar o fato de que na repressão do século 17 ao Quilombo de Palmares ocorre à morte de Zumbi (1655 – 1695) de forma tão infame. Costura-se seu órgão genital dentro da boca. Revela-se para nós cordiais um ódio profundo e violento contra a rebelião dos escravos.
A própria instituição da escravidão que mostra as barbáries com negros (seres humanos) arrastados pela rua (nada diferente de hoje em que pessoas são arrastadas pelas ruas nas viaturas policiais). Esta instituição nos acompanhou por quase três séculos. Sempre houve um medo da formação de um Haiti em Salvador (BA) e que derrubasse o sistema com uma insurgência.
Quando falamos que Cabral invadiu o que seria a Bahia, isto é uma verdade. Mas esquecemos de que aqueles índios haviam invadido aquela costa e devorado os povos Sambaquis que ali habitavam. Não se pode construir um ideal de que no Brasil moravam índios que eram românticos e poéticos. Esta é uma fantasia. Ou a ideia de que o mundo rural ou do interior seja um paraíso diante das grandes cidades. Somente quem morou no interior sabe da brutalidade presente ali.
Quando houve a repressão a Canudos com quatro expedições e a maneira como se executou as pessoas da cidade foi uma brutalidade indescritível. Vale lembrar que Canudos foi a segunda maior cidade da Bahia. Euclides da Cunha notou neste cenário um ódio do sertão. Como se o ódio não fosse característica do Brasil. Característica puramente rural e não do povo civilizado da cidade grande.
Se imaginarmos que a Guerra do Contestado em plena República do século 20 usou aviões para bombardear território brasileiro, gente brasileira. A repressão ao Contestado é de uma violência imensa e ainda não devidamente avaliada e estudada no Brasil.
A repressão do cangaço foi outro momento de violência. Esta repressão representa a decapitação das pessoas. Pegavam as cabeças e levavam para um instituto a fim de estudar onde estava o mal dentro das cabeças dos cangaceiros.
Todos estes fatos não são cenas de um país pacífico. Interessante como se oculta da formação das pessoas a ideia de Guerra Civil. Não utilizamos a expressão Guerra Civil quando na verdade o Rio Grande do Sul se separou por 10 anos do Brasil. Não utilizamos Guerra Civil na Cabanagem, na Sabinada, na Balaiada e nem na Revolução de 1932 de São Paulo contra Minas Gerais.
Nós temos por hábito achar que Guerra Civil é coisa de estrangeiro. Se Guerra Civil é ataque a pessoas do mesmo país e local, então nós vivemos sistematicamente episódios de Guerra. Não utilizamos o termo porque queremos atenuar os horrores que permeiam nossa história e formação social. Não queremos olhar no espelho e assumir que somos violentos. Andamos com ar poético de calmaria assustados com a maldade dos outros que nos cerca. Mas na verdade, temos na formação da nossa sociedade ódios latentes: racial, social, político, econômico e cultural.
Os nazistas perceberam um detalhe importante sobre o ódio – ele tem a força de unir pessoas. O ódio sempre é um odiar em comum. É difícil amar em comum. Nos esforçamos para amar. Mas o ódio sempre é mais fácil.
Nossa cultura no Brasil é da morte. Haja vista nosso trânsito que é um dos mais violentos do mundo. Tivemos casos de pessoas que foram amarradas numa esquina no Rio de Janeiro e apanharam publicamente. Outras são apedrejadas por expressar uma religião diferente do senso comum.
Nós gostamos da violência. O mal é banal. É do cotidiano. Desenvolver a capacidade de engolir a diferença é um dom. Por exemplo, mudar o nosso olhar em direção ao outro e perceber que por mais que seja velho, gordo, pobre, desinformado ou o que seja e pensar: tal pessoa é apenas diferente. Não é melhor e nem pior. Somente é diferente.
*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.
Christopher Marques é bacharel em Teologia pela Universidade Metodista de São Paulo, Mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Pós-Graduado em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Formado em Psicanálise Clínica pela Faculdade Metropolitana de São Paulo. Membro do grupo Coalização Inter-Fé que desenvolve pesquisas na área da espiritualidade e ciências. Autor dos livros “Um novo olhar para a missão da Igreja” (Editora Reflexão, 2015), “O que pensa a fé protestante sobre a política, cultura, sustentabilidade, trabalho e dignidade humana” (Editora Fonte Editorial, 2017), “Quando a Vontade de Viver Vai Embora” (Editora Paulus, 2019) e “Deus fará maravilhas: Vivendo o poder do impossível diante das dores da vida” (Editora GodBooks, 2023).