Pautas morais e religiosas distorcem o sentido da laicidade e aprofundam as desigualdades

Pautas morais e religiosas distorcem o sentido da laicidade e aprofundam as desigualdades

Não é novidade que parte de nós, brasileiros e brasileiras, gostamos de religião. Uma vela para o Santo ou a Santa, uma oferenda para um Orixá, um “Deus te acompanhe” ou um Amém estão no cotidiano de nossas relações sociais. Tem razão Martinho da Vila quando canta “Sincretismo Religioso: “Deus está em todo lugar. Nas mãos que criam, nas bocas que cantam, nos corpos que dançam, nas relações amorosas, no lazer sadio, no trabalho honesto. Onde está Deus? - Em todo lugar! Olorum, Jeová, Oxalá, Alah, N`Zambi. . . Jesus! E o espírito Santo? É Deus!”

Este sentimento de proximidade com Deus não é problema algum. É algo que nos constitui culturalmente. Afinal, crentes e não crentes têm certeza de que “Deus é brasileiro”.

Por que então, tanta polêmica quando o tema é religião e participação política? Por que tanto questionamento em relação ao investimento feito por algumas igrejas na recente eleição para o Conselho Tutelar? Se somos tão apegados a Deus, não é natural que pessoas de fé estejam presentes nos conselhos de participação social, nas câmaras de vereadores e vereadoras, nas assembleias legislativas dos Estados, no parlamento, no STF e em outros espaços?

Sim, por vezes, a polêmica sobre religião e participação política parece exagerada. Afinal, pessoas que creem também são cidadãs. A fé compromete toda a pessoas que crê com práticas de justiça, de amor e defesa da vida. Estes compromissos somente são possíveis de ser concretizados pela cidadania.

Neste ponto, começamos a complexificar a reflexão. Primeiro, é verdade que a laicidade do Estado não impede que pessoas que creem exerçam sua cidadania e participem da vida política brasileira. No entanto, a laicidade apresenta algumas questões relevantes que precisam ser consideradas. A separação entre religião e Estado assegura, entre outras questões, o direito à liberdade religiosa e de não ter religião. Da mesma forma, a laicidade, tem a função de proteger as pluralidades culturais, religiosas e de gênero. Nossa laicidade prevê também que religião e Estado podem estabelecer parcerias com vistas ao bem coletivo.

Portanto, a laicidade não é problema, assim como, não é problema que pessoas de fé participem dos espaços políticos.  O problema surge quando a relação de cooperação entre Estado e religião é distorcida. Estas distorções podem ser identificadas em vários âmbitos, desde pessoas que integram o funcionalismo público e colocam suas convicções religiosas acima da Constituição Federal até em situações mais graves, como interditar direitos de um ou outro grupo social sob o argumento da defesa de determinada doutrina religiosa.

Olhemos o caso de uma servidora da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS) destituída de suas funções por citar versículos bíblicos em documentos internos da universidade. A instituição pública de ensino foi condenada a indenizar a servidora por prática de intolerância religiosa. O argumento da 2ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região foi o de que a liberdade religiosa é garantia fundamental, inclusive para ser exercida nos espaços públicos. A liberdade religiosa protege um conjunto de pensamentos e crenças, inclusive a possibilidade de tentar convencer outros a mudarem de religião.

Importante problematizar o argumento da 2ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, porque surge a pergunta pela compreensão de espaço público. O espaço público, pode ser a rua, a praça, o supermercado e também os setores públicos do Estado como as escolas, unidades de saúde, universidades, delegacias de polícia, entre outros lugares.

Esta servidora citou versículos bíblicos em documentos oficiais internos de uma universidade pública. Será que poderíamos identificar nesta atitude um certo abuso da liberdade religiosa? A Universidade pública é regida por leis que devem proteger o direito de todas as pessoas exercerem e terem respeitadas as suas convicções filosóficas e religiosas. Ao citar o versículo bíblico em documentos oficiais da universidade é possível argumentar de forma contrária à da 2ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região. A servidora poderia exercer sua vocação missionária na rua, na praça pública, no supermercado, mas não em documentos oficiais de um órgão público. Portanto, a Universidade estava certa, quando, antes de destituir a servidora, chamou sua atenção e realizou processos disciplinares internos. A destituição só aconteceu porque as medidas anteriores não surtiram efeito.

Esta mesma problematização poderia ser feita quando nos deparamos com o empenho de grupos religiosos de recorte majoritariamente católico romano e evangélico em ocupar espaços como o Conselho Tutelar sob o argumento da defesa da vida e da “família natural”. Que um grupo religioso compreenda que a vida deve ser defendida desde a concepção e que existe somente um modelo de família não é um problema em si. A questão é quando desejam colocar esta compreensão acima do que prevê a Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a Lei Maria da Penha, apenas para citar algumas das leis.  Ao ocupar de forma intensiva os conselhos tutelares, grupos cristãos interditam a participação de outros grupos sociais.  Sabemos da importância de separar “o joio do trigo”. Muitos conselheiros e conselheiras tutelares são pessoas ativas em suas igrejas, mas separam o exercício de sua vocação religiosa do exercício de sua função pública. Chamamos isto de consciência laica, que é quando as convicções religiosas ficam restritas ao âmbito privado. No entanto, infelizmente, nos últimos anos têm sido recorrente a ocupação religiosa de Conselhos Tutelares com o objetivo de disseminação de doutrinas religiosas e de impedir o acesso a determinados direitos, como o da interrupção da gravidez resultante de estupro.

Da mesma forma, atentam contra a laicidade as tentativas de proibir a união civil entre pessoas do mesmo sexo com argumentos sem sentido, como o apresentado pelo deputado Nikolas Ferreira. Segundo o parlamentar, “a união civil entre pessoas do mesmo sexo apresenta consequências civilizatórias e culturais, pois a finalidade do casamento é preservar a humanidade. Se não fosse o casamento hetero, não haveria mais seres humanos”.

Pautas morais e religiosas distorcem o sentido da laicidade e aprofundam as desigualdades. Para as igrejas também deve valer o princípio de que a minha liberdade termina quando começa a liberdade da outra pessoa. Não há liberdade religiosa irrestrita, por isso, a laicidade é tão importante.

*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site


Romi Bencke é pastora da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, graduada em Teologia pelas Faculdades EST (São Leopoldo), mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da UFJF. Em 2013 recebeu o prêmio de Direitos Humanos na categoria Promoção e Respeito à Diversidade Religiosa. Atualmente ocupa a função de secretária geral do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC) e integra o grupo coordenador do Fórum Ecumênico ACT Brasil.