A morte e a morte de Letícia, a evangélica: o silenciamento de evangélicos para a necropolítica

Um dia desses, eu estava lendo uma notícia a respeito de um processo envolvendo policiais paulistas que taparam com as mãos as câmeras de seus uniformes e executaram uma pessoa rendida. A notícia informava que após ser instalado um inquérito militar para investigar a fraude processual e o assassinato, os policiais responderiam na justiça comum, caso não fosse aplicado o excludente de ilicitude. Neste momento, eu descobri que o excludente de ilicitude, que não existe, virou uma “cultura jurídica”.

Muitos evangélicos apoiam ou silenciam diante dos resultados nefastos da agenda da necropolítica bolsonarista: excludente de ilicitude, armamentismo, chacinas em comunidades, expansão das milícias e insensibilidade diante das chacinas.

O último capítulo da expansão da necropolítica foi a chacina, no dia 21 de julho, de 19 pessoas no Complexo do Alemão. Uma personagem representa o resultado da necropolítica bolsonarista aplicada com zelo pelo governador e cantor católico Cláudio Castro: Letícia Marinho de Salles.

Essa mulher de 50 anos era conduzida por Denílson Glória, seu namorado e morador do Complexo do Alemão, em um Siena prata, onde estava também Jaime da Silva. Na Estrada do Itararé, onde não havia confronto, nem tiroteio, nem gritos, nem fuga, nem nada, Denílson parou no sinal fechado com os vidros abertos, ao lado de um veículo. O carro foi alvejado por um policial militar. Letícia foi atingida e morreu.

Letícia era moradora do Recreio dos Bandeirantes. Ela era uma costureira que vendia quentinhas para sobreviver e planejava atuar na área de segurança. Ela também era evangélica, e era conhecida por ajudar as pessoas. Mãe de três filhos e avó de três netas, ela era filha de um policial militar reformado que morreu no Hospital da PM.

Letícia representa um grande overlap de tudo aquilo que o bolsonarismo espera do que eles chamam de “cidadão de bem”: religião cristã, potencial profissional de segurança, ligada à polícia por meio de seu pai, de uma família que pode ser enquadrada no estereótipo de “família tradicional”.

A ironia é que o nome Letícia é proveniente do latim laetitia, termo latino que significa alegria.

A necropolítica de Bolsonaro se alimentou do apoio de quem se enfureceu com uma crítica aos evangélicos, mas não se compadeceu dos milhões de evangélicos moradores de comunidades carentes; de quem rejeita um Estado comunismo, mas permanece inerte diante da violência policial no Estado autoritário. A necropolítica de Bolsonaro não tem palavras de consolo para inocentes mortos em uma operação policial - ainda que entre os assassinatos esteja o de Letícia.

Continuaremos a ver evangélicos discutindo o risco de fechamento de igrejas pelo Estado; chamando a rejeição e as críticas feitas aos evangélicos de cristofobia; alinhando-se politicamente a grupos de extrema-direita de forma sabuja, e com resultados nocivos; tentando controlar as genitálias até de quem não é cristão por causa de sua perspectiva infantil de sexualidade; defendendo armas; elogiando policiais incondicionalmente; e celebrando privilégios religiosos. Porém, dificilmente alguém verá evangélicos questionando a morte de Letícia, ela mesma, evangélica, mãe, avó e filha de policial. Nem Bancada Evangélica, nem o Malafaia ou o Cláudio Duarte, nem denominações solertes em seu apoio a Bolsonaro “pela família brasileira e contra o comunismo pós-moderno gay e abortista”.

O que muitos evangélicos fazem com o seu silêncio é provocar a segunda morte dessa irmã, concorrendo para a morte social da crente Letícia. E como é possível romper com essa cumplicidade e complacência? Um bom início é parar de apoiar (inclusive por omissão) o excludente de ilicitude, e exigir que policial que mate seja investigado, faça reciclagem e responda pelos crimes que cometer.