A opção evangélica por Bolsonaro (IV): a questão hermenêutica

A opção evangélica por Bolsonaro (IV): a questão hermenêutica

Por Sérgio Dusilek

O que explica a opção evangélica pelo bolsonarismo? Após apresentarmos os três primeiros, chegamos então, ao último fator elencado para esta análise, que é a questão hermenêutica.

O cristianismo é essencialmente hermenêutico e como tal, desafiador. Paul Ricoeur apontava para as três raízes do problema hermenêutico que tratava da transformação do evento revelatório em texto; posteriormente, do texto em evento na sua comunicação; e o fato da revelação maior de Deus estar centrada na pessoa de Jesus de Nazaré, o que deveria impedir tentativas de enquadramentos.

Esta dinamicidade, esta sadia tensão presente na nascente hermenêutica cristã, deu lugar, segundo Erich Auerbach, a um esquema rígido e simplista. Foi o processo de institucionalização da Igreja que retirou dela, entre outras coisas, a sua graça de conviver com os diferentes. O estabelecimento do dogma que suplantou a ênfase na narratividade, no testemunho, reflexo de uma Igreja que passa a gastar mais tempo como organização do que como organismo, catapultou a igreja para uma ruptura com seu modo inicial de ser. Tal enrijecimento, segundo Auerbach, coadunou com o processo de redução da cultura antiga.

O modo dialogal do nascente cristianismo, que pode ser visto nas parábolas de Jesus, ou mesmo nas cartas paulinas, além da presença da “interpretação reinterpretativa” (termo escolhido por Auerbach) nos pregadores que queriam alcançar mais pessoas com a mensagem do Evangelho, foi substituído por uma versão enlatada. Ao invés de dialogar com os povos cujas culturas eram divergentes do cristianismo, passou-se à transmissão do pacote dogmático. Ora, ao fazer isso tem-se não mais uma evangelização, mas sim uma colonização. Lembro que o Evangelho tem a capacidade de se inculturar: ele é como semente, como bem disse Jesus de Nazaré.

A própria chegada do protestantismo no Brasil se dá pela recepção de uma “carga cultural”. Nesse sentido, seguiu a própria lógica colonizadora que apregoava que bom era o que vinha de fora, do Velho Mundo.

A questão hermenêutica se tornou mais complexa com a modernidade. O distanciamento cultural em relação ao mundo bíblico, interpelando o intérprete para processos de contextualização ou mesmo de atualização do texto, aliado à diversificação das condições de vida, trouxe muita instabilidade. Para Auerbach, abriu-se o espaço para a tentação de confiar em uma seita, com uma receita simplista, fruto de uma postura “semicientífica, sincrética e primitiva”. Para um mundo que se acostumou ao pacote dogmático cristão, clamando por soluções simplistas para os graves problemas que envolvia crise de identidade e pertença, o fascismo se alastrou sem violência, açambarcando o que mais estava à sua frente. Se a vida se torna cada vez mais complexa por um lado, por outro há uma recorrência às soluções simplistas, negacionistas.

Ora, essa solução simplista está presente no bolsonarismo, com as mesmas marcas posturais, assim penso, mencionadas por Auerbach ao falar sobre o período entre as duas grandes guerras. Desta feita, ao conjugarmos essa visão simplista, totalizante, com a feição dogmática que o cristianismo tomou, aliado a um empobrecimento conceitual das homilias e dos pregadores, temos a quarta explicação do porquê se deu a aderência evangélica ao bolsonarismo.

Uma hermenêutica que não abrange a complexidade da vida e muito menos ainda a dinamicidade das narrativas bíblicas. Uma hermenêutica que tem a infeliz petulância de se enxergar acima das ideologias, mesmo quando todos sabemos que não há interpretação isenta, afinal, ela sempre passa pelo filtro de quem lê. Uma hermenêutica congelada e congelante, retrógrada, voltada quando muito para a tarefa exegética, sem reconhecer que desde Friedrich Schleiermacher, a exegese se tornou insuficiente como método interpretativo.

Sim meus caros leitores, o gap da Igreja Evangélica no Brasil não é só conceitual: é histórico, é formativo. Tal realidade precisa nos impulsionar para o tamanho da tarefa que nos espera. Que Deus nos ajude, até porque, vamos precisar muito dEle.

*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.


Pr. Dr. Sérgio Ricardo Gonçalves Dusilek é Mestre e Doutor em Ciência da Religião (UFJF/MG); Pastor na Igreja Batista Marapendi (RJ/RJ); Professor do Seminário Teológico Batista Carioca. Autor de Bíblia e Modernidade: A contribuição de Erich Auerbach para sua recepção e co-organizador de: Fundamentalismo Religioso Cristão: Olhares transdisciplinares; e O Oásis e o Deserto: Uma reflexão sobre a História, Identidade e os Princípios Batistas.