A pós-modernidade e a espiritualidade como produto
Coluna - Christopher Marques
As religiões competem no mercado de “bens religiosos”: festas, significados para a vida e para o sofrimento, laços sociais e afetivos dentro das comunidades de fiéis, casamentos, educação de filhos, narrativas de fim de mundo, rituais mágicos ou não, ferramentas de comunicação espiritual ou similares como TV ou mídias sociais. Jesus aparece, nesse contexto, como não apenas um bem de consumo, mas um “bem religioso” e símbolo de todo o processo de “commoditização” das religiões. Observa-se hoje com o avanço desenfreado desse processo a transformação das religiões em bens de consumo tratados via ferramentas de marketing e apresentando a diferença entre religião e espiritualidade e a vida espiritual no mundo do mercado.
Em geral os brasileiros são cheios de uma fé mercantilista e acentuadamente materialista. Diante da falta de respostas para as questões mais complexas da vida é a partir da fé que os seres humanos vão à busca de explicações místicas e sobrenaturais nas religiões.
A construção da modernidade foi colocar o homem no centro de tudo. Na verdade, foi um resgate do pensamento de Protágoras que afirmava que o homem é a medida de todas as coisas. A modernidade sendo resgatadora deste pensamento recoloca o homem como razão primeira e última de todas as coisas e desloca Deus para uma posição de pouca relevância no cenário cultural e humano. Com este movimento surge em cena o “eu”. Este conceito que revela nada mais do que um autoritário e mandão que vive entorno de uma egolatria em que tudo deve satisfazer suas necessidades.
Viver em função do “eu” é viver debaixo de uma ditadura. Ele exige sucesso, fama, poder, prestígio, dinheiro, beleza, mais ter do que ser. Aliviar a tensão e o peso de viver assim este “eu” cobra uma espiritualidade que o leve a pensar que sua vida não se resume ao materialismo consumidor. Para tanto, se cria programas e atividades que a pessoa se sinta como se estivesse se desligando desta realidade. Então, se cria retiros e acampamentos espiritualistas para que as pessoas transcendam a vida de aparência e se conectem com algo maior. Isto não passa de três dias um encontro assim. Por conta de tamanha procura, pessoas do mercado e marketing entenderam um nicho cultural e econômico muito forte. Hoje temos SPA que tratam de meditação espiritual para relaxamento do físico e da alma.
Cansa ter que alimentar um “eu”. Não é necessário ser um crente para ver isso, basta ter algum senso de ridículo para ver o quão cansativo é satisfazer o “eu”. E a modernidade é toda uma sinfonia para este pequeno “eu” infantil.
Dentro deste cenário temos uma doença muito séria que é o alimentar do desejo. Estamos numa cultura em que o desejo é idolatrado. A religião entendeu muito bem isto e trabalha a partir dos seus discursos, agendas e programações para despertar o desejo nas pessoas. Quem não deseja ficar rico? Prosperar? Ver sua empresa crescer e destacar? Quem não deseja emagrecer? Encontrar o amor da sua vida ou se ele for embora trazer de volta? Por incrível que pareça isto entrou na religião. Qual o resultado disto? Templos cheios, líderes religiosos vivendo de forma extravagante. Pessoas procuram estas propostas de forma consciente. Ninguém está ali de maneira alienada. No que diz respeito ao consumo religioso é a venda da mágica espiritual com o interesse do desejo do público. Isto gera um bando de gente infantil que uma vez não tendo seu pedido aceito, troca a fé ou espaço litúrgico como quem troca de roupa.
A diluição do conceito é tão avassaladoura que hoje tudo pode se encaixar dentro de uma espiritualidade. Esta é a força da comoditização, ela se adaptada a qualquer coisa. Hoje podemos pensar numa nova categoria de espiritualidade: “espiritualidade sustentável”. É uma espiritualidade na qual ninguém tem de sustentar nada além de uma dieta balanceada, uma bike legal e um pouco de meditação durante a semana. De empresários “do bem” aos falantes da língua tibetana, do chá do ayoasca e transes nas montanhas verdes do sul de minas, muita gente corre para ouvir e vivenciar essa sabedoria que parece que descobriu a roda.
Religiões são sistemas de sentido. A vida, aparentemente sem muito sentido, precisa de tais sistemas. A profissão pode ser um. A dedicação aos filhos, outro. A história, a natureza, grana também serve. Enfim, muita coisa pode dar sentido a uma existência precária como a nossa.
Este movimento de espiritualidade pós-moderna vem de uma classe social elevada, que fala línguas estrangeiras, é cosmopolita, se acha melhor do que os outros, tem formação superior, mora em regiões de alto padrão, come alimentos orgânicos que são inacessíveis para a maioria das pessoas e é altamente orientada para assuntos de saúde do corpo, o que na verdade revela uma ganancia com a vida.
É um típico movimento de espiritualidade para deixar as pessoas felizes. Aliás, vivemos numa ditadura fortíssima da felicidade. É impossível se sentir triste ou infeliz nesta cultura. A religião muito esperta dentro do seu aparato de marketing entendeu o conceito e passou a vender felicidade. Um reflexo de pessoas deste tipo de grupo é que são abobadas. Pessoas felizes o tempo toda não tem noção da realidade cruel em que vivem e não perceberam o quanto suas próprias vidas são poços de angústia e desespero. Desde a Grécia antiga, e isto está presente no cristianismo monástico e medieval, a melancolia é algo inteligente. Ou seja, viver é difícil e causa dor. O melancólico ou pessimista, sabe mais sobre si mesmo e da vida. Isto não é uma proposta anticristã de viver num estado de desespero que gera tormento, mas é entender o que o próprio Cristo disse que neste mundo teríamos aflições e dores e que não era para esperarmos tempos melhores porque o rumo da humanidade seria a autodestruição.
Fazer o homem se sentir bem não é espiritualidade, é SPA espiritual. Isto é outra coisa. Na tradição clássica da espiritualidade o ser humano é deparado com seu lado sombrio, os vícios que habitam na sua alma e quais processos necessários para sua libertação. Este é o ponto do grande problema das novas espiritualidades que é vender uma coisa para a pessoa ler e se sentir legal. Ao contrário, a espiritualidade profunda – católica ou protestante – está sempre fincada numa experiência de esvaziamento do eu, de descentramento de valor. É típico do eu inflado, por exemplo, achar que o principal problema da vida é se sentir amado, quando na realidade o mais importante é ser capaz de amar. Em vez da cultura narcísica em que a preocupação primeira é o direito a ser amado, a espiritualidade profunda propõe muito mais o eu ser capaz de amar. Santo Agostinho disse: “Se você quer ser livre, ame”. Porque isso liberta você de você mesmo. Os melhores dias da nossa vida não são os que lambemos as nossas feridas, mas aqueles em que estamos envolvidos com pessoas. Isto se chama descentramento.
Diria que toda espiritualidade verdadeiramente séria começa com um processo de consciência do mal que está em você e do seu justo lugar no mundo.
*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.
Christoper Marques é Bacharel em Teologia pela Universidade Metodista de São Paulo, Mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Pós-Graduado em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor convidado da Faculdade de Medicina Santa Marcelina na área de Espiritualidade, foi professor da Casa do Saber São Paulo e membro do grupo Coalização Inter-Fé que desenvolve pesquisas na área da espiritualidade e ciências. Autor dos livros “Um novo olhar para a missão da Igreja” (Editora Reflexão, 2015), “O que pensa a fé protestante sobre a política, cultura, sustentabilidade, trabalho e dignidade humana” (Editora Fonte Editorial, 2017) e “Quando a Vontade de Viver Vai Embora” (Editora Paulus, 2019).