A Reforma Protestante não é só Lutero. Entenda.
Há mais de quinhentos anos, na cidade de Wittemberg, Martin Lutero pregou suas 95 teses. Esse evento é conhecido como ponto inicial da chamada Reforma Protestante. Toda a cristandade, de uma forma ou de outra, celebra ou avalia essa data fundante. Partindo, por vezes, da perspectiva triunfalista da história Lutero é tratado como o grande divisor d’águas e herói do protestantismo, e todo o processo da reforma do séc. XVI é visto como uma verdadeira epopéia. Dessa forma, e como é comum nas nossas datas comemorativas, fazem do dia 31 de outubro um illud tempus (tempo sagrado, tempo originário ou tempo mítico) e da Alemanha um axis mundi (centro do mundo mítico). Não quero desqualificar a participação do monge agostiniano, mas simplesmente sinalizar que sua contribuição é um fator — importante — entre outros fatos indispensáveis e, as vezes, esquecidos na história, que não começa e muito menos termina na Alemanha.
Para ser mais objetivo, o dia 31 de outubro foi como uma espuma na beira da praia, precedida por ondas de ideias e movimentos religiosos da igreja no Ocidente. Como bem disse Le Goff, ao explicar a Nova História Cultural – uma reviravolta epistemológica na historiografia: “a Nova História mostra que esses ‘grandes acontecimentos’ são em geral apenas a nuvem – muitas vezes sangrentas – levantadas pelos verdadeiros acontecimentos sobrevindos antes desses, isto é, as mutações profundas da história”. Antes de Lutero temos, por exemplo, os Goliardos, que carnavalizavam, como diria M. Bakhtin, a igreja oficial com indisciplinas e sátiras. “Nas costas luteranas” surgiram figuras como Guilhermo de Ockham, que já dizia, bem antes, que a moralidade do ser humano não depende da sua própria ação, mas da aceitação da vontade de Deus/graça de Deus que pode santificar antes que haja o arrependimento. Em seu “Brevilóquio Sobre o Princípio Tirânico”, Ockham, por incrível que pareça, já questionava o poder papal e sua tradição. Como ilustração, também, cabe aqui o caso de Orleans, em 1022 d.C, quando 14 clérigos da alta hierarquia foram queimados por questionarem a graça do batismo, a eucaristia, a remissão dos pecados mortais e outros pontos importantes do Cristianismo medievo. O que falar dos Cátaros, um grupo de “hereges” proclamadores da centralidade do Novo Testamento para experiência da fé? Não podemos esquecer também dos Valdenses que deixariam qualquer luterano boquiaberto em relação à valorização das Escrituras. Devemos lembrar, da mesma forma, dos Místicos – dos quais Lutero foi grandemente devedor – com suas regras e direta relação com o Deus da Bíblia. Na mesma lista temos Wycliffe, Huss e Savonarola que dispensam comentários.
Lutero foi uma ponta do iceberg, favorecido por contextos social, cultural, econômico e religioso propícios para o desencadeamento de ondas transformadoras iniciadas na Europa e expandidas para todo o mundo, criando não somente novos cristianismos (se assim posso dizer), mas também outras formas de pensar a vida e o homem na arte, na política, na economia etc.
Se em Lutero não temos o início da Reforma, muito menos encontramos nele o fim. O “a posteriori” do dia 31 contribuiu para a formulação do processo da sola scriptura, sola fides, solus christus, sola gratia e soli deo gloria. Depois de 1517 a história da Igreja Cristã também foi presenteada com grupos de alas mais radicais e revolucionárias, como, por exemplo, Thomas Müntzer, Andreas Karlstadt e os anabatitas , os quais inquestionavelmente continuaram o processo reformador e tinham posturas muitas mais “reformistas”.
Minha intenção com esse brevíssimo texto não é negar o evento “Lutero”, mas colocá-lo no seu devido lugar na história (muito grande por sinal), que ainda não tem o seu ponto final; os movimentos pentecostais modernos são exemplos dessa continuidade reformista.
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Kenner Terra é doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Pastor da Igreja Batista Betânia, RJ, e Coordenador do Curso de Teologia da Universidade Celso Lisboa. Membro da Associação Brasileira de Interpretação Bíblica (ABIB) e da Rede Latino-americana de Estudos Pentecostais (RELEP). Acompanhe o Kenner no YouTube, Twitter e no Instagram.