A Vivência Evangélica diante do Carnaval Brasileiro: Reflexões e Perspectivas

A Vivência Evangélica diante do Carnaval Brasileiro: Reflexões e Perspectivas

Vou apresentar a seguir três pontos que considero importantes para destacar referentes à questão dos evangélicos e sua relação com o “Carnaval Brasileiro” como evangélico que, há quase 30 anos, tem tentado compreender os caminhos e descaminhos deste cada vez mais importante cointingente social diante dos desafios e possibilidades da rica cultura brasileira.

O primeiro ponto é que o Carnaval é um elemento cultural brasileiro fortemente sedimentado. Como tal, ele dificilmente será excluído da agenda brasileira e do contexto de celebração do país. Este assunto tem um histórico mais amplo que pode ser compreendido à luz de como o catolicismo lidou com o Carnaval em sua história. Mesmo quando tinha mais força política e social, o Carnaval permaneceu e acabou sendo incorporado até mesmo no calendário católico, situado antes do período da Quaresma. Entendo que os evangélicos também terão que amadurecer na forma de lidar com essa realidade social e cultural brasileira à medida que os mesmos se tornarem mais enraizados na realidade social e histórica do Brasil. Essa importância do Carnaval é destacada, por exemplo, na análise de Roberto DaMatta sobre o mesmo em Carnavais, Malandros e Heróis, afirmando que essa celebração ajuda a explicar as próprias complexidades do fenômeno social brasileiro, em seu elemento subersivo da ordem hierárquica dominante em uma expressão localizada e intensa de igualitarismo, desordem e extravazamento. A incorporação, no Brasil, dos elementos negros nos contornos estéticos do carnaval nacional, dos ritmos às danças e simbologia, muito distinto de expressões carnavalescas mundo a fora, reforça este elemento de enraizamento da tradição do Carnaval no solo cultural brasileiro. No Brasil, elementos profundos de sua história, organização social e composição miscigenada, fundem-se de forma única no Carnaval nacional, tornando-o um evento que expressa como poucos o que o país é. Como tal, é um evento que merece mais respeito e uma análise mais atenta dos cristãos evangélicos antes de qualquer condenação fácil, como tem sido a tendência histórica recente.

Ainda dentro deste primeiro ponto, é importante mencionar outra atitude equivocada em relação ao tema do Carnaval e os evangélicos, resumida emblematicamente no filme "Divino Amor", do Diretor Gabriel Mascaro, lançado em 2020. O filme é uma distopia que imagina o futuro de um Brasil predominantemente evangélico. No filme, é sugerido que o Carnaval deixaria de ser a festa mais importante do Brasil já em 2027, dando lugar a um suposto festival do “Amor Supremo”, um anti-tipo conservador evangélico ao Carnaval nacional. Considero essa visão bastante equivocada, pois, por um lado, ela superestima a capacidade real de influência evangélica em certos setores da vida cultural nacional, e, por outro, subestima a própria capacidade dos evangélicos em se adaptarem a elementos culturais nacionais à medida que se tornam um grupo social mais estabelecido. Embora seja uma crítica social imaginária, ela talvez reflita o temor de uma parcela da sociedade brasileira no outro lado do espectro sócio-político. Porém, assim como o catolicismo histórico e até mesmo o Islã (com suas Shabanas antecendendo o Ramadã) incorporaram eventos de celebração popular em seus calendários, a tradição brasileira do carnaval dificilmente será modificada pelos evangélicos.

Um segundo ponto a se considerar relativo ao Carnaval e a relação com os evangélicos diz respeito às pluralidades que encontramos tanto nas expressões carnavalesacas concretas que encontramos no país, como nas distintas respostas que os evangélicos apresentam às mesmas.

Em relação ao Carnaval, é importante destacar que os diferentes tipos de celebração trazem desafios distintos para os cristãos evangélicos. Por exemplo, há a tradição dos desfiles de escolas de samba e blocos carnavalescos tradicionais, que são mais institucionalizados, hierárquicos, e apresentam uma penetração sócio-econômica razoável em distintas comunidades de periferias de grandes cidades pelo país, como Rio de Janeiro, São Paulo, Recife e Salvador. Esses eventos representam um desafio aos evangélicos que vai além do período de celebração em si. E isso se relaciona à importância socioeconômica do Carnaval e suas instituições no dia a dia das comunidades, especialmente entre aqueles que atuam profissionalmente nas áreas artísticas e musicais com alta demanda pelas escolas e blocos tradicionais. Verifica-se que muitos evangélicos inicialmente se afastam do Carnaval devido a uma percepção superficial e precipitada da festa como algo totalmente negativo a ser evitado. No entanto, ao longo do tempo, alguns acabam retornando, como exemplificado pelo caso de Anderson Paz, um sambista carioca conhecido que se converteu ao evangelismo, se distanciou do contexto carnavalesco por um período, mas eventualmente retornou, mantendo sua identidade artística. Ele mudou seu próprio nome, tornando-se Anderson Paz de Deus, e continuou participando ativamente da produção para os enredos. Isso evidencia uma tendência entre os evangélicos de que, com o passar do tempo, sua relação com o Carnaval seja reconsiderada por outras bases além da simles condenação moral. Embora a ênfase escatológica do evangelicalismo, que enfatiza a iminência do retorno de Jesus e a consequente relativização dos laços sociais e profissionais, possa inicialmente afastá-los da festividade, há uma tendência de acomodação à medida que as pessoas amadureçam em sua compreensão cristã da realidade e ao enfrentamento de desafios sociais mais concretos, que envolvem complexas relações sociais e econômicas. Costureiras, músicos, construtores, artistas em geral, especialmente nas comunidades periféricas, sempre tiveram no carnaval uma forma importante de sustento de suas profissões. Tal demanda, por sua vez, tende a fazer com que os evangélicos passem a considerar o Carnaval, com algumas ressalvas, como um elemento cultural brasileiro legítimo, digno de respeito, e que permite sua participação profissional. Um dado interessante a se buscar seria verificar o percentual de evangélicos trabalhando ativamente em instituições ligadas ao Carnaval de grandes cidades brasileiras.

Quanto ao aspecto de resposta dos evangélicos à expressão pública e midiática desta expressão mais institucionalizada de carnaval, a tendência é que continue havendo um afastamento e uma avaliação negativa do evento. Porém, tem se percebido simultaneamente uma amenização da crítica rápida e a criação de uma postura mais madura no diálogo com expressões sociais como temas de samba-enredo e até de aocmpanhamento interessado das escolas e blocos pelo país. A discussão surgida em torno do enredo da Mangueira em 2020, intitulada "A verdade vos fará livre", que gerou forte oposição por parte dos evangélicos mais conservadores, revela que esta face mais institucionalizada do Carnaval brasileiro continuará sendo um foco de controvérsias, discussões e debates sociais importantes de “lado a lado”.

Outro aspecto do Carnaval que reflete esse pluralismo é a sua configuração crescentre pelo Brasil em múltiplos blocos de rua, presentes crescentemente em grandes centros como São Paulo, Belo Horizonte e Recife. Essa modalidade é mais popular e subversiva, conforme analisado pela antropologia brasileira, destacando-se por ser mais igualitária que a tradição das escolas de samba e “desafiar” as hierarquias sociais. Essa dinâmica tem raízes históricas profundas no Brasil, remontando aos tempos da escravidão e à autorização da quebra das rotinas hierarquizadas socialmente exemplificadas pela festa portuguesa do Entrudo. É importante observar que, nesta expressão carnavalesca nacional, ocorre uma diversificação crescente dos blocos por tribos sociais organizadas através das redes sociais, com cada um ocupando seu próprio espaço geográfico organizados de forma quase “paralela”. Há blocos Cosplay, LGBTQ+, infantis, de terceira idade e... evangélicos. Em Belo Horizonte, por exemplo, há o bloco "Saiba Viver", que inicialmente tinha uma proposta profética contra a própria existência do Carnaval local, mas que recentemente adotou uma postura de celebração e testemunho, utilizando a festividade para mostrar que a vida do Evangelho também inclui alegria, batuque e ritmo. Ronaldo Leão, presidente desse bloco, destaca que eles levam “uma mensagem de Deus para aqueles que se sentem sozinhos durante o Carnaval, mostrando que quem tem uma vida próxima a Deus sabe viver bem, feliz e celebrar”. Essa tendência de celebração nos blocos evangélicos durante o Carnaval é interessante, destacando-se não pela contestação, mas pela afirmação de um modo distinto de celebração carnavalesca, sem os excessos típicos dos carnavais de rua nacionais.

Um último ponto a considerar é que as próprias respostas evangélicas ao Carnaval tendem a ser plurais, refletindo a própria diversidade deste imenso contingente social nacional. Por exemplo, existe uma tendência entre os grupos pentecostais tradicionais, e neopentecostais das periferias, em que permanece uma relação de conflito aberto contra as celebrações carnavalescas. As expressões culturais afro-brasileiras presentes no Carnaval, com seus batuques e simbologia histórica ligada aos candomblés e às tradições afrodescendentes, é vista como um proibitivo de qualquer envolvimento direto com a celebração. Nesse cenário, há uma forte tendência ao preconceito aberto e à contestação do Carnaval, questionando sua legitimidade e promovendo um afastamento total da festividade. A reação ao Carnaval nestes contextos assume contornos de um conflito entre poderes sobrenaturais, com os evangélicos chamados a se retirar e orar em perídos de Carnaval.

Já à medida que nos voltamos para a classe média e o neopentecostalismo que tende a predominar nesse estrato social, caracterizado por uma teologia mais voltada à prosperidade e à promoção de bem-estar social, observamos uma crescente tendência de organização dos cristãos para participar do contexto do Carnaval com uma abordagem distinta, mais voltada para a celebração e o testemunho público. Esse movimento está se fortalecendo, especialmente nos eventos de Carnaval de rua e nos blocos. Esta é uma tendência que pode se fortalecer à medida que as novas configurações dos blocos de rua permitem um espaço mais “seguro” à celebração ou participação profissional no Carnaval pelos membros de igrejas.

Já em setores “evangelicais” com uma inclinação teológica de âmbito mais crítico e “liberal”, como em algumas denominações protestantes históricas, há uma perspectiva de incorporação positiva de elementos culturais do Carnaval e uma visão menos crítica em relação à celebração típica do período, dentro dos termos históricos da festividade. Essa tendência, embora minoritária, se manifesta em contextos mais elitizados, representando uma forma de cristianismo mais cultural, muitas vezes rotulada como "libertina" e excessivamente liberal. Nesses ambientes, há uma disposição para não problematizar o Carnaval e aceitar sua celebração como parte das realidades e histórico da cultura local.

Para concluir, a questão do Carnaval continuará sendo significativa para os evangélicos à medida que este grupo social se torna mais significativo na configuração social nacional. Como dito, as demandas profissionais que surgem durante o Carnaval, como as relacionadas aos desfiles de escolas de samba e blocos tradicionais, parecem inevitáveis. Aqui seria importante uma pesquisa mais atenta acerca de como os profissionais evangélicos, desde costureiras até músicos e compositores, lidam com essa realidade atualmente. Quanto aos blocos de Carnaval, a tendência parece ser de uma maior acomodação, ainda que crítica, dos evangélicos, a este elemento da cultura brasileira. Assim como os católicos medievais tiveram que incorporar o Carnaval em sua leitura religiosa da vida, acredito que os evangélicos também tenderão a se inserir cada vez mais no contexto festivo do Carnaval, buscando formas mais ordeiras de celebração. No entanto, a tendência de uma ampla parcela mais conservadora continuará a se utilizar do período do Carnaval para o afastamento intencional da festa, organizando retiros espirituais, congressos, e outras atividades de formação dos membros das igrejas.

Algo a se reconhecer nesta relação dos evangélicos com o Carnaval é que tal interação se torna um locus importantre para uma leitura das configurações sociais nacionais no presente e no futuro. Aqui temos um evento com profundas raízes históricas nacionais, tradutor único de nossas expressões culturais e sociais, como nos lembra Da Matta, diante de um movimento relgioso consideravelmente novo e com uma proposta de direcionamento ético-cultural claramentre distinto. Se queremos entender o Brasil de hoje e do futuro, teremos de compreender onde e como estão os evangélicos durante o Carnaval.


Rodolfo Amorim é obreiro e co-fundador de L’Abri Brasil e Cooperador da ABC2 (Associação Brasileira de Cristãos na Ciência), Rodolfo possui Mestrado em Sociologia pela UFMG (2009), Graduação em Relações Internacionais pela PUC-MG (2001) e Especialização (Lato Sensu) em Elaboração de Projetos Internacionais (2004). É professor na Faculdade Presbiteriana Gammon – FAGAMMON e tem experiência de estudos em religião e cultura (IBIOL-Londres/2002) e arte e fé cristã pela L’Abri Fellowship (2007). Escritor e co-autor dos livros Fé Cristã e Cultura Contemporânea e Cosmovisão Cristã e Transformação, ambos pela editora Ultimato. Rodolfo é casado com Cintiane, pais da Beatriz e do Pedro.