Ações sociais das igrejas: entre o proselitismo e o amor cristão

Aqueles que acompanham regularmente as publicações deste Observatório certamente já tem conhecimento dos inúmeros trabalhos e ações sociais promovidos por igrejas evangélicas especialmente nas regiões mais pobres do Brasil. Tais ações constituem um exemplo contundente de como as igrejas se fazem presentes na vida de seus membros de múltiplas maneiras, não apenas através dos cultos.

Para uma compreensão adequada dessa característica das igrejas evangélicas talvez seja pertinente recordarmos a gênese histórica delas. Antes de o evangelicalismo que está na gênese das denominações evangélicas contemporâneas surgir, o protestantismo europeu se exprimia na forma das igrejas oficiais (Igrejas do Estado), A Igreja Luterana na Alemanha, a Igreja Anglicana na Inglaterra, ou a Igreja Presbiteriana na Escócia, para ficarmos nesses exemplos. O nascimento das chamadas denominações evangélicas, um fenômeno relacionado mais diretamente ao protestantismo na América do Norte, representou então uma ruptura em relação ao protestantismo associado às igrejas estatais.

Ainda no século XVI na Inglaterra, mas principalmente nos Estados Unidos, país onde nunca existiu uma igreja estatal e onde a ideia da defesa da liberdade religiosa sempre esteve muito presente, começaram a surgir as primeiras denominações, fundadas na América por imigrantes protestantes europeus. Na Inglaterra, embora existisse a igreja oficial, a defesa da liberdade religiosa alimentada pela influência das ideias iluministas permitiu o surgimento de algumas denominações, mas foi nos EUA que elas se expandiram a ponto de configurarem uma das principais características religiosas daquele país, o denominacionalismo.

As denominações evangélicas que surgiram nesse contexto rapidamente se espalharam pela América Latina, África, e Ásia através dos missionarismos modernos. Os evangélicos denominacionais que migraram para o continente americano inspirados pelo exemplo de líderes religiosos do protestantismo europeu, desde sua origem, assumiram um compromisso muito forte com o trabalho social. A sua influência se faz presente ainda hoje. O metodismo em sua origem, por exemplo, sempre foi marcado por essa postura, e isso pode ser observado na ênfase na educação e no envolvimento social verificado nas igrejas metodistas de hoje. Na Inglaterra, temos informações históricas de que os primeiros líderes metodistas tinham um compromisso com diversas questões sociais, lutavam contra os vícios, defendiam a criação de escolas e hospitais entre outras medidas.

Quando os primeiros missionários europeus e norte-americanos chegaram à América Latina, trouxeram consigo no conjunto da fé evangélica essa característica de preocupação social, que se faz presente ainda hoje. Mas, é preciso lembrar, que muitos dos seus projetos sociais estavam relacionados às políticas desenvolvimentistas e expansionistas de seus países de origem em relação à América Latina. Devido a isso, é verdadeira a queixa de muitos de que o missionarismo protestante foi o braço religioso das novas colonizações, tanto quanto o missionarismo católico do séc. XVI foi o braço religioso das colonizações ibéricas. De qualquer forma, é possível dizer que, no geral, o evangélico traz uma preocupação social consigo, isto é, ele não gosta de ser associado à figura de alguém que se dedica somente ao rito do culto, pois entende que isso é ser religioso. O evangélico busca não ser apenas religioso, mas viver sua fé de maneira mais ativa, mais dinâmica, e o faz conforme os alinhamentos teológicos e políticos que ele possui. Por isso, as igrejas evangélicas desenvolvem projetos sociais, porque se vem pertencendo a essa tradição que requer isso delas, até como forma de identidade mesmo.

Muitas vozes críticas das igrejas evangélicas defendem que boa parte das ações sociais realizadas por elas servem para fins de proselitismo religioso. Infelizmente, muitos desses críticos estão corretos em sua avaliação. Por mais que se deseje destacar a importância do trabalho social realizado pelas igrejas, seria um equívoco ver neles somente uma preocupação desinteressada com o outro ou pela transformação da sociedade. Muitos desses projetos são vistos antes de tudo como meios de uma evangelização proselitista, que está mais preocupada em arrebanhar membros para as igrejas locais. Aos olhos desses evangélicos, aquele que recebe o pão numa mão deveria também receber a Bíblia com a outra.

Ainda que o cristianismo, entendido em todas as suas manifestações, ao chegar na América Latina tenha sofrido transformações e adquirido especificidades originadas dos desafios que os missionários encontraram em cada região do Novo Mundo, no que resultou formas de se vivenciar a fé destoantes daquelas verificadas na Europa, como fica nítido no surgimento do pentecostalismo no Brasil e nos demais países latino-americanos, talvez a expressão mais legítima do que seria uma fé evangélica tipicamente latino-americana, isto é, uma forma popular da fé evangélica influenciada pela cultura e crenças locais; ainda assim duas características típicas das denominações que se enraizaram na América Latina se mantiveram, a evangelização e o empreendimento de várias ações denominadas de ações ministeriais ou sócio-ministeriais.

Seria, pois, em função dessas bases históricas e teológicas que os trabalhos sociais realizados pelas igrejas evangélicas geralmente se orientam pela ideia de missão evangelizadora. O cerne da teologia da fé evangélica é a missão, sua ênfase está na evangelização e tudo o que seus missionários fazem é compreendido nesses termos. Na realidade, o termo “evangélico”, enquanto movimento religioso moderno, vem de “evangelização”, referindo-se àqueles que são “evangelizadores”.

Mas há dissonâncias. Atualmente, existem em muitas igrejas evangélicas uma corrente, da qual eu me considero parte, que busca ressignificar o trabalho social das igrejas, concebendo-os como fruto de um genuíno interesse pela transformação da sociedade para fins de construção de um mundo melhor. Para essa corrente, a importância das ações sociais reside antes na contribuição que elas dão para a construção de uma sociedade mais justa e não em seu caráter evangelizador proselitista, o qual é criticado.

Por essa razão os adeptos desse movimento são chamados, quase sempre em tom pejorativo, de progressistas, esquerdistas ou comunistas por aqueles que se orientam pelo ideal evangelizador (no sentido de proselitismo). Para esses que estão mais preocupados com o crescimento de sua Igreja local, quando ela realiza um trabalho social num orfanato, num asilo, ou num centro de recuperação não há problema algum, desde que esse trabalho seja visto como manifestação dessa ação de evangelização que atrai membros. Se o objetivo é conquistar novos adeptos para as igrejas, então não há problema, e o trabalho social é inclusive estimulado.

Mas, quando um evangélico defende que sua participação em projetos e ações sociais tem como único objetivo a transformação da sociedade, os adeptos do ideal evangelizador proselitista os contestam, pois, entendem que nesses casos as ações sociais teriam como pano de fundo outras motivações que não a evangelização em si. Entendem que essas ações avessas ao proselitismo religioso são pautadas por ideologias de esquerda.

A despeito de tais obstáculos, essa corrente evangélica “progressista” verificada em toda América Latina está em movimento e tem como verdadeira missão associar o trabalho social das igrejas ao sentimento de amor pelo mundo, à real preocupação pelo sofrimento das pessoas. Não que essa corrente contra-hegemônica defenda que os atendidos pelas ações sociais das igrejas não possam por sua vontade se tornarem evangélicos, pois isso está nocampo de sua liberdade religiosa. O que ela defende é que essa conversão não deveria em hipótese alguma se dar por meio de um sistema de trocas e nem como condição para o envolvimento social. Nós evangélicos fazemos parte do mundo, o usufruímos e dependemos dele, de igual forma deveríamos amá-lo e buscar torná-lo um lugar melhor para todos e todas até mesmo como parte de nossa fé. O envolvimento social é tarefa de todo o cristianismo nas suas mais diversas expressões, e, historicamente, da tradição evangélica, e deveria ser feito como expressão de amor pelas pessoas e não para torna-las um número a mais nas igrejas.