Algumas reflexões sobre os traficantes evangélicos

Recentemente, viralizou o vídeo, no twitter, em que supostos traficantes, armados, entram em um igreja evangélica para pedir oração e bênção para o pastor. Mesmo que seja uma encenação, o conteúdo jogou lenha na fogueira em torno do tema “traficante evangélico”. A moral cristã caminha historicamente com a violência no Brasil, através da polícia, dos grupos de extermínio, milicianos e traficantes. A ditadura militar foi o exemplo mais emblemático desta relação.

A partir da década de 1990, começamos a assistir a mudança da configuração religiosa no país. Nas favelas e periferias das grandes cidades, os chefes das facções criminosas deixaram de recorrer aos terreiros para “fecharem seus corpos”, na tradicional chave do chamado sincretismo religioso, e começaram a ter contato com códigos e repertórios evangélicos através de membros convertidos em suas família. Inclusive, nas décadas posteriores, acompanhamos o processo de expulsão dos terreiros das favelas.

É importante destacar que estamos falando de grupos que utilizam a violência como base de controle do território, gestão do tráfico de drogas e manutenção de liderança. Além disso, no cenário de desemprego em massa, o país retornando para o mapa da fome, é preciso olhar o tráfico como possibilidade de emprego para pretos e pobres. Diante disso, convido a analisarmos a questão sem colocarmos a religião como condutora da engrenagem, mas sim, como mais um componente acionado para submeter os moradores ao poder das facções, para “salvarem” suas vidas, conforme pontuou Christina Vital em entrevista ao site Unisinos.

A submissão dos moradores através da lógica salvacionista é formatada pela Teologia da Batalha Espiritual, conceito cunhado pela socióloga Cecília Mariz, em que a dominação física e simbólica do mal precisa ser combatida. Por isso, pregar a mensagem cristã é lutar contra o demônio, que está presente nas nossas ações e na prática de religiões não cristãs, referenciada nas religiões afro-brasileiras. No livro intitulado “Identidade, etnia e estrutura social”, Roberto Cardoso de Oliveira destaca que as religiões de matriz africana se configuram como “o outro” contrastivo dos evangélicos, que é demonizado, nessa interação.

No tocante a atuação do poder público nas favelas e periferias das grandes cidades, tomo como referência Foucault para afirmar que nesses territórios, o Estado atua nas e pelas margens. Diante disso, as igrejas evangélicas se constituem como espaços que acolhem e empoderam socialmente os pretos e pobres nas áreas mais pobres. Ao mesmo tempo, a assistência prestada abre possibilidade das igrejas se enquadrarem como seculares, justificando que sua atuação está além da religião, assumindo lugar importante na sociabilidade, no suporte emocional, na busca por emprego. De acordo a Christina Vital, o caráter multifacetado do trabalho de assistência social dos evangélicos, aliado a uma cultura de base cristã conservadora, devido a hegemonia católica de outrora, abriu espaço para a forte presença evangélica dentro das penitenciárias e na identidade religiosa dos policiais.

Diante do cenário de violação dos direitos básico dos presos no Brasil, que em sua maioria são pretos e pardos, assim como a maioria dos fieis das igrejas evangélicas no Brasil, é necessário compreender o papel desempenhado por elas na sobrevivência e manutenção de suas vidas nas disputas entre facções. No cotidiano das favelas e periferias, essas lideranças religiosas se legitimaram a ponto de exercerem o papel de intercessão junto ao tráfico, para reverterem sentenças de morte. Inclusive, encaminhar para as comunidades terapêuticas religiosas, é uma possibilidade de reverter as penas de morte estabelecidas pelo tráfico, devido as dívidas não-pagas por uso problemático de drogas.

A partir da concretização do segmento evangélico, é importante também pensarmos que o contato dos traficantes com a religião evangélica, perpassa pela questão da transmissão religiosa que ocorre, na maioria das vezes, por meio da influência familiar ou pela escolha. Em minha dissertação, intitulada Força Jovem Universal: Estratégias para a juventude da IURD (Igreja Universal do Reino de Deus), debati que um dos aspectos primordiais para compreender as transformações religiosas na contemporaneidade é o pluralismo (que reforça a ideia de uma competição por fieis), responsável pela diversificação das possibilidades de escolha. Em relação à transmissão religiosa, tomando como base os dados do Censo, Ronaldo de Almeida e Rogério Barbosa informam que ela se dá em grande parte na relação entre filhos e mães, devido a maior tendência das mulheres em apresentar vínculo religioso.

O proselitismo e as estratégias de transmissão religiosa são fundamentais para a formação de membros em potencial, principalmente, para os membros nascidos em famílias evangélicas (assim como para as demais instituições), mostrando a efetividade de sua herança religiosa. E é justamente dentro deste contexto de disputa religiosa e transitoriedade, principalmente, entre os mais jovens, que as igrejas evangélicas, por meio de seus projetos de assistência, investe na juventude. A juventude assim é entendida como público a ser formado e a ser responsável pela continuidade da instituição, no presente e no futuro.