Sambistas Evangélicos: um relato de um sábado no Parque Madureira (RJ)

Sambistas Evangélicos: um relato de um sábado no Parque Madureira (RJ)
Parque de Madureira. Créditos: Arthur Henrique Martins

Não é nenhuma surpresa visitar o Parque Madureira em uma tarde de sábado e esbarrar em uma roda de samba. Terra onde onde o couro come e o galo canta mais cedo, Madureira é um grande quintal do batuque. Surgida no século XIX após o loteamento de fazendas de cana de açúcar em crise, Madureira foi abrigo de escravizados recém-libertos de muitos lugares, sobretudo do Vale do Paraíba.

O Parque, que recebe o nome de Mestre Monarco, está fincado na terra das históricas agremiações Portela e Império Serrano. Lugar onde todos os caminhos levam ao samba, Madureira foi palco do movimento Samba na Praça, uma reunião de sambistas convertidos ao evangelicalismo, de trajetórias e denominações diversas, mas com um propósito em comum: cantar sobre a nova vida com Jesus a partir do samba. 

MADUREIRA OU JERICÓ? 

Sem investimento massivo, público ou privado, o Samba na Praça está em sua nona edição nacional, com incontáveis edições regionais já realizadas. Para os irmãos envolvidos no projeto, a realização dos encontros mais se parece com o episódio bíblico em que Deus ordenou que o exército de Josué desse sete voltas em torno da muralha da cidade de Jericó, cantando e tocando trombetas, a fim de botar a muralha abaixo. Os encontros, quando bem sucedidos, são como muralhas derrubadas. 

A fala inicial do evento demonstrou seu caráter combatente: após muitos imprevistos com a liberação do espaço e um acidente logístico com a lona que protegia o local, restou aos irmãos presentes interpretar os acontecimentos como decorrentes de uma batalha espiritual. Própria da teologia da batalha espiritual, marcante no movimento neopentecostal, é a ideia de que lugares precisam ser conquistados e consagrados a Deus. A oração inauguradora do evento afirmava que estávamos todos ali, no Parque Madureira, em um lugar consagrado a espíritos maus, mas que a presença do movimento Samba na Praça abençoava o local. 

Assim, os instrumentos ali presentes (da percussão às vozes) eram como armas de guerra. Para os irmãos presentes, não tratava-se apenas de fazer música, mas de vencer uma batalha e conquistar a Jericó. 

“QUEM SE HABILITA ATÉ PODE CHEGAR” 

Sambistas de vários estados encontraram-se no evento. Muitos estreantes, como o grupo Profetsamba, formado por membros da Assembleia de Deus Vitória em Cristo de Vilar do Teles (RJ). Perguntados sobre a sensação de participar do evento, eles afirmam: “Pra gente, é um prazer e uma honra estar no meio dos bambas do samba gospel.” 

Outro grupo que participou pela primeira vez do evento, o ministério É Pra Jesus veio de mais longe: Uberlândia. Formado há apenas três meses, o grupo se reuniu em Uberlândia para atividades de evangelismo, tocando em feiras livres. Líder do grupo, o pastor Daniel (percussão) afirma que o samba tem sido uma ferramenta para alcançar pessoas frustradas com a igreja, afastadas e sem força para caminhar. “O samba quebra protocolos”, diz o pastor Tiago (banjo), outro membro do grupo. 

Da Zona Leste de São Paulo, o grupo Amigos do SAT surgiu com o intuito de auxiliar financeiramente o circuito dos sambistas gospel, arrecadando mantimentos para músicos do segmento. “A gente não faz samba dentro de igreja, nosso intuito é ser projeto de rua”, diz um dos membros do grupo. Ricardo SAT deixa claro o propósito do grupo: “aonde ninguém quer ir, a gente vai: cracolândia, favela e comunidade.” 

Outros grupos também participaram do evento, como o Grupo Recomeço, o projeto Samba com Cristo (representado pelo pastor Adriano Sued), além de bambas como Jorginho Dom (ex-compositor da Portela), Flavinho Silva (ex-Grupo 100% e Fundo de Quintal), Pastor Xandão (ex-Pique Novo), Pastor Waguinho (ex-Morenos) e muitos outros. Inúmeras falas durante o evento traçam uma distinção entre o samba gospel e o samba do mundo: o gospel não é um evento realizado para fins de entretenimento, mas um ministério que Deus concedeu aos sambistas convertidos para alcançar e converter vidas para Cristo. Portanto, o Samba na Praça não se tratava de um show ou uma roda de samba costumeira, mas um evento extraordinário, marcado por sua sacralidade e sua transcendência. 

OUTRAS HISTÓRIAS, O MESMO BATUQUE 

Tantan, repique de mão, reco-reco, surdo, pandeiro, caixa, banjo, cavaco, contrabaixo e violão são itens imprescindíveis para fazer uma batucada acontecer. Perguntado sobre o que diferenciava o Samba na Praça de uma outra roda de samba que acontecia a poucos metros dali, Anderson Cruz, coordenador do movimento, afirmou: “música é música, o que diferencia é a mensagem. Aqui há uma mensagem diferente que entra nos lares para melhorar a vida de alguém: a mensagem aqui é Jesus.” 

De fato, os bambas presentes no local, trazem consigo uma herança musical inquestionável. Herdeiros de um batuque passado por suas famílias e suas vivências, os sambistas participantes fazem qualquer um firmar na palma da mão. Mas a todo tempo buscam diferenciar o seu modo de fazer samba daquele outro modo com que faziam antes de convertidos. Na oração de abertura do pastor Ivan Aurelio, essa diferença fica clara: “nós gostamos muito de samba, nós somos sambistas, mas acima de tudo somos servos de Deus”. 

Se essa diferença não está tão demarcada no aspecto sonoro - pois, afinal, trata-se de uma roda de samba -, ela aparece nas letras, que frequentemente lembram a mudança de vida das pessoas presentes, assim como nas roupas, nos passos de dança e na linguagem, sempre marcados por comedimento. 

A ausência de símbolos ligados à tradição de religiões católica ou afrobrasileiras também chama a atenção: nota-se, por exemplo, a ausência de santos sobre a mesa ou cordões que estejam filiados a tradições religiosas às quais o mundo do samba se acostumou. 

Se o calor era forte, provocando uma sensação térmica de 50ºC, isso não era motivo para vermos presentes no local as famosas latas ou garrafas de cerveja. Elemento fundamental para a sociabilidade carioca, o álcool não participa do evento. Nota-se, porém, um certo tipo de embriaguez espiritual, em que pessoas sorriem, abraçam-se e cantam o tempo inteiro, sem deixar a peteca do samba cair. Essa embriaguez espiritual é nítida quando irmãos e irmãs se utilizam das línguas estranhas durante o samba. Sem significado explícito, as línguas estranhas funcionam como contraponto melódico para as canções entoadas, como vozes auxiliares que conclamam a uma harmonia espiritual. 

As orações, feitas a todo momento, servem de diapasão, afinando os espíritos de irmãos e irmãs presentes, para que todos estejam ali no mesmo propósito. 

Foi possível testemunhar a conversão de pessoas que passavam pelo local, em sua maioria moradores de rua. Em alguns dos casos, essas pessoas diziam estar “voltando para Jesus”. Com as conversões realizadas no local, o Samba na Praça concluiu o seu maior objetivo. 

FESTA E RITO

Lembremos do famoso provérbio de Beto Sem Braço: “o que espanta miséria é festa.” Em outras palavras, como afirma Luiz Antônio Simas: “Não se faz festa porque a vida é boa, mas pela razão inversa.” Há nessas frases a ideia de que culturas festeiras, como o samba, acontecem para resistir às violências cotidianas e afirmar uma outra vida possível. A ideia de uma vida permeada por uma batalha espiritual incessante, como a vivenciada pelos sambistas no Samba na Praça, mostra que o evento também é uma forma de comemoração e festejo pelas vitórias que Deus os torna capazes de alcançar. 

Por outro lado, quem presenciou o Samba na Praça, viu sujeitos capazes de conjugar festa e uma boa vida. Em várias falas, nota-se a alegria daqueles sujeitos em estar na “presença de Deus”. O aspecto mais alegre das músicas, que falam de uma vida pregressa repleta de sofrimentos e angústias, mas que agora possui um aspecto de regozijo, clarifica que ali há pessoas genuinamente felizes por pertencerem a uma outra forma de vida. 

A história do samba nos mostra que as festas, produzidas coletivamente, possuem a função de tornar grupos sociais mais coesos e de serem uma forma de mediação simbólica, resgatando a memória e criando laços de sociabilidade. O Samba na Praça, como um movimento que visa fortalecer o circuito do samba gospel, é criador e fortalecedor de laços sociais, além de articulador de narrativas e histórias de transformação de vida. 

É importante manter eventos como o Samba na Praça à vista para uma compreensão mais atenta de um Brasil cada vez mais evangélico. Mais especificamente sobre a relação entre samba e evangelicalismo, é preciso manter duas perguntas no horizonte: o que os evangélicos farão do samba e o que o samba fará dos evangélicos? 

Algumas respostas podem ser costuradas alhures, mas é mais prudente ficarmos com os famosos versos de Arlindo Cruz e Mauro Diniz sobre Madureira: “tem mil coisas pra gente dizer, o difícil é saber terminar.”

Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.


Arthur Henrique Martins é graduado em Filosofia (UCB) e mestrando em Ciências Sociais (PPCIS/UERJ), onde desenvolve pesquisa sobre cultura, música popular e religião.