Amor cristão está na gênese das Comunidades Terapêuticas

O sentimento que tive enquanto assistia à reportagem sobre comunidades terapêuticas realizada pelo Fantástico foi de tristeza. A impressão final é a de que ao longo de dois meses de investigação, a equipe de jornalistas que assinou a reportagem exibida em rede nacional no último domingo, deliberadamente se concentrou nos casos de grave irregularidades, de proselitismo religioso, de uso indevido de medicações prescritas e de violência, constatados nas comunidades terapêuticas investigadas. O efeito geral é o de uma perigosa generalização que desmerece um trabalho imprescindível que vem sendo realizado há décadas.

Antes de qualquer coisa, esclareço que meu objetivo aqui não é defender as instituições acusadas pela reportagem. Pelo contrário, defendo a necessidade de o Estado manter e ampliar os mecanismos de fiscalização, para que assim crimes como aqueles investigados pelo Fantástico possam ser combatidos.

Registrado esse esclarecimento, proponho me deter sobre um ponto, aquilo que eu acredito ser a real motivação dos trabalhos desempenhados pela maioria das comunidades terapêuticas. Como realizo esse trabalho há pelo menos 20 anos, escrevo a partir das reflexões feitas ao longo desse período.

Inicio recordando a proposta que no meu entender norteia a prática das comunidades terapêuticas. Na gênese delas está o interesse de se enfrentar uma situação dramática. Há problemas sociais que parecem residir nos lugares mais profundos do rio da sociedade, lá onde as sujeiras permanecem inacessíveis à nossa percepção. O problema enfrentado pelas comunidades terapêuticas é outra coisa, da ordem daquilo que se mostra com muita clareza para quem anda pelas ruas das grandes metrópoles do Brasil. Só em São Paulo estima-se que o número de pessoas em situação de rua atingiu o índice de 30 mil. Entre essa população, verifica-se um número preocupante de usuários de drogas, em particular do crack, algo que têm destruído milhares de vidas. São indivíduos que perderam completamente suas referências, sua capacidade de escolha, as mínimas condições necessárias a uma vida saudável. É pelo interesse de ajudar a esses indivíduos que a maior parte das comunidades terapêuticas nascem e se orientam.

Nesse contexto, a proposta basilar das comunidades terapêuticas é a de recriar um lar, uma casa para aqueles que não têm onde viver. Historicamente o papel dessas comunidades têm sido o de proporcionar algum alento ou esperança para a pessoa que está em sofrimento e para seus familiares. Por isso, não é por acaso que muitas dessas comunidades espalhadas pelo Brasil surgiram da iniciativa de religiosos, dado relevante para respondermos ao argumento de quem defende que, no tratamento de dependentes químicos, a religião entraria em conflito com a ciência, ideia que de resto parece não se sustentar cientificamente segundo algumas das abordagens da psicológia a respeito do papel da emoção nos processos de cura.

Entender a missão cristã que está na origem dessas comunidades terapêuticas é um passo necessário para a formulação de um juízo razoável sobre o trabalho que elas vem realizando. A necessidade de destacar esse ponto partiu do meu incômodo diante do modo como a reportagem do Fantástico explorou a questão dos recursos públicos recebidos por algumas das comunidades investigadas.

Então, sem meio termos, gostaria de registrar que o que move o nosso trabalho é o amor.  Foi o amor cristão que me levou a dedicar os últimos 20 anos de minha vida ao trabalho integral na comunidade terapêutica que coordeno. É o amor que me levou a fazer da comunidade o meu lar, local onde hoje vivo com minha esposa e com meus filhos. Eu, particularmente, encontro a fundamentação para o trabalho que realizo em uma passagem bíblica, o versículo 58 do livro do profeta Isaias, onde lemos que o verdadeiro jejum que Deus almeja para nós não consiste naquele em que nos limitamos a clamar pelas coisas que queremos, mas sim naquele em que repartimos nossos frutos com os famintos. Essa passagem me tocou profundamente porque nela encontrei uma expressão perfeita do significado da verdadeira espiritualidade.

Não custa pontuar, por fim, que a ação das comunidades terapêuticas surgiu num contexto que ainda não havia a disponibilidade de verbas públicas. No caso da nossa comunidade, tivemos acesso a recursos disponibilizados pelo governo somente depois de termos funcionado por 15 anos graças unicamente ao auxílio de doações. Além disso, importante dizer que esse investimento público tem sido insuficiente para a oferta de um serviço de melhor qualidade. Recentemente nossa comunidade foi fiscalizada, como toda comunidade deve ser, e um dos fiscais nos indagou se nas refeições oferecidas diariamente aos residentes incluímos carne ou alguma outra proteína animal no cardápio. Como fazer isso no atual cenário econômico, com os preços dos alimentos básicos nos atuais patamares?

O nosso trabalho, o trabalho que eu desempenho e o trabalho que muita gente boa vem desempenhando nas comunidades terapêuticas, não surgiu motivado pelo interesse nos recursos que o Poder Público vem disponibilizando nos últimos anos. É pela alegria de poder ajudar alguém a voltar a viver, não pelo dinheiro, que realizamos o nosso trabalho.