Arqueologia evangélica: pseudociência e grandes negócios

Arqueologia evangélica: pseudociência e grandes negócios

Nos últimos anos, as redes sociais no Brasil têm visto a multiplicação de conteúdos sobre as relações entre a Bíblia, a arqueologia e a história antiga. É uma rede vasta, que tem alcançado um público gigantesco. São programas televisivos, canais de vídeos no Youtube, postagens no Instagram, páginas no Facebook etc. Alguns são seguidos por milhões (sim, milhões) de pessoas. Não há um estudo sobre o público desses canais, mas uma análise superficial permite supor que uma boa parte é composta por evangélicos e, mais genericamente, por cristãos. As novelas bíblicas na TV aberta certamente contribuíram para formar um público ávido por conhecer mais sobre os “tempos bíblicos”. Nos sites, os comentários interativos deixam bastante claro que a audiência encontra nesses programas exatamente o que eles propõem, ou seja, uma confirmação das narrativas bíblicas por disciplinas consideradas científicas. Trata-se de uma variante de um argumento bastante tradicional e difundido: as escrituras sagradas podem ser comprovadas pela ciência. Particularmente, no caso da arqueologia, a ideia central é a de que ela pode fornecer provas materiais concretas e irrefutáveis da veracidade de narrativas bem conhecidas pela audiência, do êxodo hebreu do Egito aos reinados de Davi e Salomão; da criação e do dilúvio no Gênesis aos sinais do Apocalipse.

O caso brasileiro tem, evidentemente, as suas raízes na tradicional arqueologia bíblica. Desde a afirmação da arqueologia como uma disciplina acadêmica, no século XIX, um ramo dela dedicou-se a explorar as relações de suas descobertas com os relatos bíblicos. Era um movimento esperado, pois algumas das primeiras descobertas arqueológicas e a decifração das escritas antigas (os hieróglifos e o cuneiforme, sobretudo) revelaram elementos que, de um modo ou de outro, eram referidos na Bíblia. As escavações no Egito, no Levante e na Mesopotâmia são os exemplos mais ilustrativos: pela primeira vez, os nomes de Israel, de seus reis e do próprio deus Yahweh apareciam em monumentos antigos, e os museus europeus viam suas exposições encherem-se de artefatos fabricados pelos assírios e babilônios, nada menos do que os povos que destruíram os reinos de Israel e Judá, respectivamente. 

A arqueologia bíblica viveu seus dias de glória até os anos 1960. Nas décadas seguintes, porém, a arqueologia mudou muito e já não era possível se contentar com uma perspectiva que simplesmente buscava comprovar um texto (não apenas o texto bíblico) pela simples presença de artefatos e monumentos antigos. No mundo acadêmico, a arqueologia bíblica praticamente desapareceu, ficando restrita aos domínios mais fundamentalistas dos seminários teológicos norte-americanos e de algumas universidades de Israel. Muitos institutos e revistas de arqueologia bíblica mudaram de nome e passou-se a falar de arqueologia próximo-oriental ou de arqueologia sírio-palestina. No entanto, fora da academia, a arqueologia bíblica continuou extremamente popular, como mostra o grande sucesso de livros, séries e, mais recentemente, programas na Internet.

Os conteúdos brasileiros demonstram, também, uma outra filiação: a arqueologia cristã realizada por entidades religiosas norte-americanas. Em geral, é uma iniciativa à margem das grandes universidades, concentrada em seminários teológicos evangélicos ou mesmo ligada diretamente a igrejas. Esta é uma longa tradição dos EUA e faz parte do movimento cristão conservador que valorizou os vínculos com a chamada Terra Santa e com o Estado de Israel. Algumas de suas equipes participam diretamente de escavações arqueológicas israelenses, fornecendo uma mão-de-obra de estudantes aos diretores dos sítios, em geral arqueólogos mais tradicionalistas da Universidade de Jerusalém. 

Do ponto de vista acadêmico, algumas características gerais dos conteúdos e programas brasileiros podem ser enumeradas. A primeira delas, infelizmente, é a precariedade das informações históricas e o tratamento superficial da arqueologia. Não se trata, aqui, de apontar a perspectiva religiosa que orienta as interpretações propostas pelos pastores-arqueólogos. Trata-se do nível mais básico e objetivo da informação: os programas são recheados de dados errôneos e afirmações sem fundamento histórico. Há um manifesto amadorismo, aparentemente resultante da falta de formação acadêmica dos ‘influencers’ da arqueologia bíblica. A necessidade de produzir conteúdos em um ritmo alucinante, tratando de várias sociedades antigas, que produziram documentos em dezenas de línguas diferentes, não deixa muita margem para a verificação das informações, comprometendo a qualidade final.

A segunda característica da arqueologia evangélica é seu ostensivo caráter confessional. Há, aqui, uma certa ambiguidade. Embora os conhecimentos acadêmicos sejam reivindicados como uma prova inquestionável das narrativas bíblicas, sempre se deixa muito claro que a intenção é confirmar a verdade da palavra divina, da qual a Bíblia seria a expressão concreta. Uma consequência desse procedimento é submeter o entendimento das realidades e do texto do chamado Antigo Testamento (grosso modo, correspondente à Bíblia hebraica) à revelação trazida pelo Novo Testamento, isto é, pelo advento do messias. Assim, a primeira parte da Bíblia cristã é apresentada como uma preparação da chegada de Cristo na segunda parte. 

O resultado é uma narrativa extremamente atraente e reconfortante para aqueles que buscam uma confirmação da “historicidade da Bíblia”. É uma forma de saber que não encontra amparo em uma consideração mais rigorosa dos dados históricos e está completamente afastada das tendências mais recentes da pesquisa sobre a Bíblia ou sobre a história do antigo Israel. No entanto, a falta de objetividade e a recusa do debate acadêmico não incomoda esse tipo de pensamento circular, que parte do que considera ser uma verdade absoluta contida nas escrituras sagradas e tem como única finalidade provar essa mesma verdade. No meio do caminho, a arqueologia ou a história servem apenas de instrumentos que conferem uma suposta cientificidade ao raciocínio teológico. 

Por fim, uma característica saliente da arqueologia evangélica é sua transformação em negócio rentável. As formas de monetização, típicas as plataformas da Internet, são o pilar de um empreendimento econômico altamente rentável: cursos pagos, venda de viagens à Terra Santa (incluída a possibilidade de participar em escavações arqueológicas), monetização de publicidade por quantidade de visualizações, arrecadação de fundos para obras etc. 

A arqueologia evangélica tornou-se, assim, um mecanismo de ampla difusão de informação de má qualidade e de interpretações teológicas travestidas de conhecimento científico, além de um filão lucrativo de negócios na Internet. Mas é preciso reconhecer que ela nasceu e prosperou num vácuo: os arqueólogos e historiadores profissionais, que produzem conhecimento sobre a Bíblia e seu universo, têm sido tímidos ou mesmo refratários a ocupar as redes sociais para divulgar um saber histórico e arqueológico propriamente acadêmico.

*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.