As desonestidades intelectuais mais cometidas pelos doutores da Lei no meio evangélico - III

As desonestidades intelectuais mais cometidas pelos doutores da Lei no meio evangélico - III

Chegamos a terceira desonestidade intelectual que é cometida pelos doutores da lei: a culpabilização da esquerda e do pensamento progressista pelas mazelas do país. Exemplo disso são as lições, deste trimestre, da principal revista de Escola Bíblica Dominical produzida pela Casa Publicadora das Assembleias de Deus (CPAD) nas quais o autor, pastor e doutor em teologia por um programa reconhecido pela CAPES, coloca o progressismo como exemplo de ideário do mal, identificando-o como de natureza babilônica. Sim, queridos leitores, caríssimas leitoras: há muita perturbação sendo causada entre os fiéis das Igrejas da Assembleia de Deus (principal denominação evangélica no país, segundo o IBGE) por conta de tais estudos.

Ora, ao sombrear o progressismo com a capa babilônica, o autor de tais lições desperta o povo assembleiano em duas direções: a primeira, no caminho da repulsa, da condenação do outro, uma vez que a Babilônia é a figura bíblica mais recorrente para tipificar o mal; a segunda, a convocação do povo para o grande e final embate. Para você ter uma ideia, em Apocalipse (Ap.19), a Babilônia é apresentada como a síntese de tudo o que se opõe a Deus. O uso desta figura torna-se, então, um gatilho espiritual para o empreendimento da última e maior Cruzada, para o Armagedom, para a destruição definitiva de todo o mal. É uma apocalíptica trombeta convocando para a última batalha. Lembro a você que muitos assembleianos são adeptos da corrente escatológica pré-milenista dispensacionalista, a mesma que preconiza um governo terreal de Jesus em Jerusalém por mil anos. O gatilho é, por esta razão, potencialmente perigoso, tendo em vista que o fiel é convocado para lutar ao lado "do Rei Jesus em Jerusalém"...

Esta identificação da esquerda com o mal não se restringe ao esboçamento teológico mais boçal, mais rasteiro como vimos. Nenhum teólogo sério, respeitado, dá crédito ao dispensacionalismo, popularizado pelo filme "Deixado para trás", terror entre todos os adolescentes evangélicos que já o assistiram. Há doutores da lei no meio evangélico que promovem a demonização da esquerda na esfera político-social. Trata-se daqueles que atrelam o pensamento progressista à Elite. Culpam-na como a esquerda faz, pelas mazelas do país; porém, jogam a responsabilidade por tais problemas estruturais no pensamento não conservador.

Ora, por definição, toda Elite é conservadora, pelo simples fato de não desejar mudanças. Para ficar em um exemplo, as elites alemãs da segunda e terceira década do século passado, apoiaram Hitler não porque ele era progressista e nem pelo progressismo; o apoio se deu para que os trabalhadores perdessem as poucas conquistas que eles conseguiram no pós Primeira Grande Guerra, no que ficou conhecido como socialismo de reforma. Hitler, a serviço da elite alemã, solapou as conquistas trabalhistas, afinal, os dominantes de qualquer lugar, não têm preocupação com quem está na base da pirâmide social. Guarde bem isso: toda elite é conservadora, pois somente o conservadorismo lhe confere sustentação e permanência.

O progressismo é a contestação do que aí está, do modelo social injusto, da desigualdade, das idiossincrasias assassinas do capitalismo. Não foi só o comunismo que matou nas gulags. O capitalismo matou nos campos de concentração, nas muitas guerras que sempre provocou, na manutenção do ganho que faz com que se prefira desperdiçar, descartar parte da produção, do que doá-la ao pobre ou mesmo disponibilizá-la no mercado, barateando assim os preços. É no capitalismo que temos a discussão ética sobre o alcance social da cura farmacológica: por que ela não pode ser para todos/todas? É justo, pense comigo, que sua mãe morra por conta de uma doença para a qual já tem cura, somente porque você não possui os recursos necessários para adquirir a medicação disponível no mercado? Então, para o capitalismo e seu sistema de castas sociais, parece que sim...

O progressismo se volta criticamente contra as elites. Elas não o integram. Lembro que Paul Ricoeur propôs uma clara distinção sobre este ponto: ideologia é o pensamento (conservador) que mantém certas estruturas (e elites) no poder; utopia é a construção ("progressista", por assim dizer) que questiona a ideologia, apresentando outro mundo possível, melhorado.

Atrelar o PT, para ficar em um exemplo, à elite brasileira, ou ainda aos teólogos da libertação é triplamente desonesto: primeiro, porque a elite vem contribuindo para a perda do tom vermelho do PT, tornado-o mais perto do rosa, se assemelhando a uma social democracia da Europa nórdica. Elite e PT só possuem uma coisa em comum: a letra "t"; segundo, porque esquece que na composição original do PT há grande presença evangélica e não só de teólogos da libertação; terceiro porque o PT nasceu como contestação àquilo que Jessé de Souza chamou, em seu homônimo livro, de A Elite do Atraso.

Foi a elite deste país (a célula G-20 dos mais ricos) que derrubou Dilma e apoiou a ascensão de Bolsonaro. Os ganhos do chamado socialismo de reforma, que não tem a intenção de mudar o sistema, mas de minorar os estragos da desigualdade, todos oriundos dos governos petistas, foram praticamente anulados em quatro anos do presidente que perdeu a eleição, de extrema-direita.

Alguém pode obstar sobre PT e progressismo na mesma sentença. Cabe a discussão, reconheço. Mas de modo algum colocá-lo como expressão política-partidária da Elite. Nunca foi. Não por outra razão, em toda campanha de Lula, ele ser o único candidato cobrado a se posicionar previamente, a fazer carta para evangélicos, para o sistema financeiro, etc. É a Elite vestindo o futuro governante com uma camisa de força, antes mesmo de sua eleição.

Caminhando para o final, sinalizo para uma preocupação: se as lições da CPAD, citados no início deste texto, estavam adiantadas, sendo entregues ainda no ano passado, temos a semeadura tanto de uma aposta na reeleição do capitão quanto de uma radicalização para limpeza ideológica das igrejas, uma perseguição inquisitória e cruel aos que seriam batizados como hereges por serem de esquerda. Se antigamente os hereges eram os heterodoxos, hoje os hereges são os que possuem ideário político iniciando na Centro-Esquerda.

Agora, se tais lições foram escritas após a derrota do ex-presidente, faz algum sentido esta postura inquisitória? É preparação do terreno para as prévias presidenciais de 2024? Ou, o que seria bem pior, sabem de algo que está em curso e que nós não sabemos? Uma coisa você há de convir: tais lições, no contexto da vitória de Lula, não fazem qualquer sentido...

Finalizo dizendo que ninguém é obrigado a concordar com o pensamento de esquerda, conquanto seja estranho a defesa entusiasmada do pensamento conservador justamente por pessoas que mal se mantêm na classe "C". Todavia, se vai fazer a crítica, faça-a com honestidade. Do contrário, fica parecendo que há algo de divino no pensamento da esquerda, o qual só pode consegue ser rebatido por argumentos imprecisos e tendenciosos, ideologicamente pertencentes à direita, ou ainda, à extrema direita.

* Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.


Pr. Dr. Sérgio Ricardo Gonçalves Dusilek  é Mestre e Doutor em Ciência da Religião (UFJF/MG); Pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Filosofia da Religião, da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF/MG); Pastor na Igreja Batista Marapendi (RJ/RJ); Professor do Seminário Teológico Batista Carioca. Contato: sdusilek@gmail.comAutor de Bíblia e Modernidade: A contribuição de Erich Auerbach para sua recepção e co-organizador de: Fundamentalismo Religioso Cristão: Olhares transdisciplinares; e O Oásis e o Deserto: Uma reflexão sobre a História, Identidade e os Princípios Batistas.