As mulheres evangélicas e a questão do aborto

Pensar o lugar da mulher evangélica no atual contexto do governo Bolsonaro não é uma tarefa fácil. Isso fica evidente já na impossibilidade de definirmos o que seria a “mulher evangélica”. Afinal, somos plurais. Entre nós há mulheres negras, brancas, de diferentes níveis econômicos, escolarizadas e não escolarizadas. Entre as mulheres evangélicas de classe média podemos identificar uma pluralidade de opiniões e posições. Resumidamente falando, nesse grupo há evangélicas progressistas e feministas que nunca apoiaram Bolsonaro e há também aquelas que o apoiam porque se imaginam parte de uma elite evangélica brasileira. Portanto, acredito que a especificação dos recortes de classe e de raça seria importante para sabermos o que diferentes mulheres evangélicas pensam sobre o presidente.

Em relação às mulheres evangélicas pobres e negras, podemos suspeitar que elas não avaliem o atual presidente de forma positiva. A realidade brasileira escancara a ocorrência de um empobrecimento brutal nos últimos anos. Diante desse contexto, mulheres responsáveis pela manutenção econômica das casas foram as mais atingidas, muitas delas chegando a deixar de comer para garantir a seus filhos e filhas todas as refeições diárias.

Sobre as atuações da ex-ministra Damares Alves e da primeira dama Michelle Bolsonaro para garantir votos ao presidente entre esse segmento de mulheres evangélicas, compreendo que pode haver certo êxito se o foco dessa ação recair sobre as pautas morais e não sobre o empobrecimento real que ocorreu nos últimos quatro anos e que afetou mais diretamente a vida das mulheres evangélicas negras e pobres. Se porta-vozes como elas difamarem os movimentos feministas e jogarem com discursos emocionais, com falas pró-família patriarcal, com o medo de que a família estaria em perigo, é possível que alcancem seus objetivos.

Minha suspeita em relação a essa questão é que mulheres brasileiras (não somente mulheres evangélicas) têm internalizado o ideal da maternidade e da sacralidade da família, por mais que esse ideal seja questionado constantemente pelos conflitos que atingem a família. O esforço para se validar concepções idealizadas da maternidade e da família se verifica no modo como a questão do aborto é enquadrada. O aborto é visto como crime, independentemente de mulheres evangélicas recorrerem a abortos clandestinos e de muitas delas morrerem em consequência disso. Os movimentos anti-aborto jogam com discursos emocionais que dificultam o real significado dos direitos sexuais e reprodutivos, os quais incluem, é preciso mencionar, o direito ao pré-natal, a não violência obstétrica, o acesso à creche, por exemplo. Nenhuma destas dimensões dos direitos sexuais e reprodutivos foram atendidas pelo governo Bolsonaro.

Creio que o que está colocado para quem deseja que o Brasil retome um itinerário democrático e, principalmente, com menos desigualdades, é não se furtar em conversar de forma transparente sobre todos os temas que envolvem a existência humana, desde o direito ao emprego e salário justos até os direitos sexuais e reprodutivos. O que se verifica no lugar disso são discursos, de grande impacto na vida concreta das mulheres evangélicas, que apelam para o medo como forma de enaltecimento de um falso modelo de família. Apontar as incoerências desse discurso é o desafio que temos pela frente.