Um olhar religioso sobre a violência policial nas comunidades cariocas

Um olhar religioso sobre a violência policial nas comunidades cariocas
Créditos: REUTERS/PILAR OLIVARES

“Até quando, Senhor?” (Salmo 13:1)

Não é normal e tampouco deveria ser normalizada a letalidade das ações policiais nas comunidades cariocas. Ainda mais quando envolve crianças, infantes. Também não dá para culpar a ausência de maior preparo, como se esta violência fosse reflexo da última turma de praças que a Academia de Polícia Militar formou. Definitivamente não é. A truculenta faceta das PM’s (por exemplo) é facilmente vista nas páginas dos jornais. O histórico é longo, vasto.

A violência das polícias deixa de ser um aspecto ligado ao treinamento, ao curso preparatório/probatório, devendo ser encarada como algo estrutural. Há um ciclo de violência e preconceitos que estão enraizados, culturalmente introjetados. Tais pressupostos enquadram o morador de comunidade como um cidadão de segunda categoria, de andar suspeito e de potencial afronta. Um inimigo até que se prove o contrário. O problema é que o curso das provas é muito mais lento do que o do projétil...

Soma-se a este fator a desconfiança com as polícias diante das inúmeras declarações corporativas que posteriormente os inquéritos desmentem. Como seria bom se o porta-voz de uma polícia trouxesse sempre, em suas declarações, a verdade, ainda que ela provocasse dor na sua própria “carne”, no seu próprio quadro de pessoal! A mim me parece, honestamente falando, que pouca gente acredita nas versões oferecidas pelas forças policiais, o que é muito ruim. Há uma lógica sistematizada que enviesa o trato da informação ao isentar a corporação e não privilegiar a verdade. A população, ao que tudo indica, já se deu conta disso.

Outro fator é a paralelização do Estado. Não falo somente do poder paralelo do crime organizado que contém judiciário e vara de execução penal próprios. Estou falando da polícia como este estado paralelo, no momento em que seus praças, oficiais e agentes, incorporam um nível de autoridade, uma supralegalidade, que não lhes cabe. Quando um agente policial se acha no direito de executar alguém, mesmo que seja um criminoso condenado, foragido, ele excede, transgride a legalidade da qual está investido e a qual deveria seguir, como um representante formal do Estado. Logicamente que tal postura não se encerra com os criminosos: ela se estende, como cultura, e alcança as demais pessoas que vivem naquele território.

Agrava a tragédia da pequena Eloá (menina de 5 anos que morreu em casa, na Ilha do Governador, com um tiro no peito neste sábado 12/08/2023), o fato dela acontecer dois dias depois da enquadrada que o presidente Lula publicamente deu no governador Claudio Castro falando sobre o extermínio de crianças inocentes nas comunidades do Rio a partir das ações policiais. Eloá nesse sentido pode ser vista como a resposta da política de segurança à fala presidencial. Uma resposta que tem por genitor a Lameque (Genesis 4:23-24) e que mantém o absurdo curso da necropolítica que segue promovendo injustiça ao invés de justiça, nos territórios invisíveis para o Estado, na hora em que define suas políticas públicas.

Portanto, não será uma disciplina de direitos humanos nos cursos preparatórios que mudará este quadro. A mudança, quando cultural, é mais profunda e lenta. É como mudar o curso de um transatlântico: qualquer variação na direção é preciso ser considerada milhas náuticas antes. Mesmo que esta geração não colha as mudanças, é preciso virar o leme agora. Caso contrário, colheremos muito mais mortes de crianças. Neste meio tempo, segue válido o lamento: ai da sociedade que impede que suas crianças cheguem até Jesus de Nazaré!

*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.


Pr. Dr. Sérgio Ricardo Gonçalves Dusilek  é Mestre e Doutor em Ciência da Religião (UFJF/MG); Pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Filosofia da Religião, da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF/MG); Pastor na Igreja Batista Marapendi (RJ/RJ); Professor do Seminário Teológico Batista Carioca. Autor de Bíblia e Modernidade: A contribuição de Erich Auerbach para sua recepção e co-organizador de: Fundamentalismo Religioso Cristão: Olhares transdisciplinares; e O Oásis e o Deserto: Uma reflexão sobre a História, Identidade e os Princípios Batistas. Contato: sdusilek@gmail.com