Aumento de templos evangélicos e o anuário de segurança pública de 2023 – uma comparação possível e necessária

Aumento de templos evangélicos e o anuário de segurança pública de 2023 – uma comparação possível e necessária

Nas últimas semanas, a imprensa divulgou dois dados que, aparentemente, não têm relação entre si. O primeiro deles é o aumento de abertura de templos evangélicos e o segundo dado é o crescimento do número de estupros no Brasil, conforme divulgado pelo Anuário de Segurança Pública/2023.

Olhemos para os dados relacionados à abertura de templos publicados pelo Centro   de Estudos da Metrópole, vinculado ao Centro de Pesquisa, Inovação e difusão da FAPESP (CEM/CPID). A partir dos dados do Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ), apurou-se que entre 1990 e 2019, ocorreu um aumento de 543% na abertura de templos evangélicos. Isso significa que, se em 1990 havia 17.033 templos evangélicos, em 2019, este número saltou para 109.560 templos. Apenas no ano de 2019, foram abertos 6.356 templos, o que representa uma média de 17 templos por dia. O Espírito Santo e o Rio de Janeiro são os dois Estados da federação que mais concentram templos evangélicos em relação ao tamanho da população. Uma curiosidade mostrada pelo levantamento do CEM/CPID é que existem mais de 80 templos evangélicos por 100 mil habitantes, ou seja, a cada 1.250 pessoas existe um templo.

Observemos agora os dados relacionados ao aumento de estupro e estupro de vulnerável apresentados pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023. Segundo reportagem da Agência Brasileira de Comunicação, os casos de estupro e de estupro de vulneráveis notificados às autoridades policiais contabilizaram 74.930 casos. Isso representa 36,9 casos a cada 100 mil habitantes. Se comprarmos este número com o de 2021, perceberemos um aumento de 8,2% de notificações.  Os casos de estupro somaram 18.110 vítimas em 2022, o que representa um crescimento de 7% em relação ao ano de 2021. Já o estupro de pessoas vulneráveis, em 2022, totalizou 56.820 vítimas, ou seja, 8,6% a mais do que no ano anterior.

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Destaca-se que 61,4% das vítimas tinham no máximo 13 anos. Outro dado é que, em média, 68,3% dos casos de estupro e estupro de vulnerável ocorreram na casa das vítimas.

A pergunta mais óbvia a se fazer ao lermos os dois parágrafos anteriores é sobre a relação entre o aumento do número de templos evangélicos com o aumento dos números de estupro e estupro de vulneráveis. Aparentemente, estabelecer uma relação entre os dados é, no mínimo, irresponsável.

Entretanto, valendo-me do mais trivial da hermenêutica da teologia feminista, cabe-me a pergunta pela suspeita. É necessário sim, estabelecer uma relação entre estes números. A suspeita que se levanta é pelo discurso religioso realizado e pelos valores sociais propagados nos inúmeros altares destes templos. Em qualquer roda de conversa sobre violência familiar e violência contra mulheres realizada com mulheres evangélicas, é recorrente ouvi-las contar que o primeiro lugar ao qual recorrem para conversar sobre um abuso sofrido em casa é ao pastor da igreja. A orientação mais comum que as mulheres recebem é para que orem pelo agressor. Não é bom exemplo para a comunidade de fé que uma irmã denuncie seu parceiro agressor.

Segundo dados da Pesquisa Mundial de Valores, os membros (ativos e inativos) das organizações religiosas tendem a concordar mais com as afirmações de que mulheres possuírem renda mais alta do que homens é um problema (53% concordam) e de que homens são líderes políticos melhores do que mulheres (20,5% dos membros ativos concordam contra 14% dos não-membros). Os membros ativos e não-ativos das organizações religiosas também rejeitam mais o aborto do que os não-membros. Os membros ativos das organizações religiosas também aceitam menos o divórcio. Para 54% dos membros ativos de organizações religiosas, ser uma dona de casa é tão satisfatório quanto ser uma mulher que trabalha. Entre os não-membros, o percentual cai para 28%.

A hermenêutica da suspeita precisa ser mobilizada também quando consideramos que vivemos em pleno período de politização do ultraconservadorismo religioso que se articula de forma Inter denominacional (evangélicos e católicos romanos) para fazer a disputa em torno da compreensão do que são os direitos humanos fundamentais. Esta disputa pode ser percebida de maneira bastante forte na educação pública, em especial, quando o tema é a sexualidade humana. Movimentos relacionados à “ideologia de gênero” são fortes nas igrejas. São movimentos que reforçam estereótipos de masculino e feminino e que condenam a diversidade sexual.  Entre as juventudes são fortes os movimentos que aderem à castidade como princípio de vida. Isso significa, em outras palavras, não considerar questões relacionadas a assédios moral e sexual e de não falar sobre violência baseada em gênero.

A hermenêutica feminista da suspeita joga seus refletores sobre o modelo de família heteronormativa, idealizado pelo movimento cristão conservador. Trata-se de um modelo de idealização do patriarcado presente em textos bíblicos que reforçam papéis de submissão para mulheres e meninas e que são permanentemente reforçados em vários cultos dominicais.

Por fim, a hermenêutica feminista da suspeita joga seus refletores às interdições realizadas pelo movimento cristão conservador à autonomia das mulheres. Estas interdições são consequência direta da misoginia reforçada e atualizada por um número significativo de pastores e pastoras.

Embora, não tenhamos como afirmar que todos os 109.560 templos evangélicos abertos nos últimos dez anos engrossem o movimento cristão conservador, há de se perguntar sim pela relação entre discurso religioso e o aumento do número de estupros e de estupros de vulneráveis ocorrido no último ano.

*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site


Romi Bencke é pastora da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, graduada em Teologia pelas Faculdades EST (São Leopoldo), mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da UFJF. Em 2013 recebeu o prêmio de Direitos Humanos na categoria Promoção e Respeito à Diversidade Religiosa. Atualmente ocupa a função de secretária geral do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC) e integra o grupo coordenador do Fórum Ecumênico ACT Brasil.