Carta da pastora Lusmarina

Carta da pastora Lusmarina
Pastora Lusmarina Campos Garcia. Foto: Marcelo Theobald / Agência O Globo

Não é com espanto que recebi a carta[1] da pastora Lusmarina Campos Garcia, pastora da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil direcionada ao presidente Lula e à presidente do PT, Gleisi Hoffmann, com cópia para outras lideranças importantes do PT como Gilberto Carvalho e Benedita da Silva. Em uma análise rápida e talvez simplória (e é essa análise que o povo que ler a carta vai ter) é uma cobrança de fatura. Vou explicar.

Desde muito tempo venho procurando diálogo com várias lideranças evangélicas de todos os campos que tenham apreço pela democracia como forma de evitar o que se prenunciava desde 2010 com a eleição de Dilma. Vimos uma radicalização no discurso de líderes evangélicos e também de membros do próprio governo Dilma e de boa parte da esquerda em geral. Também vimos um crescimento da influência norte-americana, particularmente do progressismo woke[2] no discurso da esquerda do Brasil, importando de lá a defesa não transversal das pautas identitárias de minorias. Ao mesmo tempo, a extrema direita crescendo com um discurso igualmente identitário de defesas de maiorias (em seu sentido sociológico e numérico). Falei especificamente sobre isso em uma entrevista dada à BBC Brasil[3] no auge da campanha eleitoral.

Nesse condão, não havia outra forma de se evitar ou amenizar a guerra que estaria por vir se não fosse pelo diálogo amplo e moderado que teria de ser feito ouvindo as lideranças e o povo evangélico que de fato frequenta as comunidades cristãs. De nada adiantaria usar os totens da esquerda como o pastor Henrique Vieira, que não tem nenhuma influência no meio evangélico e que não é ouvido por este grupo. O diálogo também teria de ser com a parte da esquerda que tem variados preconceitos religiosos contra cristãos. Um diálogo, uma ponte que pudesse servir de convergência aos dois lados que se opõem.

Em 2018, quando prenunciamos o pior que estaria por vir, a eleição de Bolsonaro, unimos em primeiro lugar um grupo grande de pastores, líderes cristãos de igrejas pequenas e médias, pessoas que se identificavam com a base de programa político popular, como saúde pública universal, direitos trabalhistas básicos, fim da regressividade de impostos, um nacionalismo não xenófobo e que priorizasse a industrialização do país para sua emancipação tecnológica, educação pública universal e ao mesmo tempo liberdade individual, incluindo a liberdade de organização religiosa e o aprofundamento da democracia com o uso dos institutos constitucionais do referendo e plebiscito para as questões de apelo moral e religioso, em um movimento plural com abertura para conservadores e progressistas. Reunimos mais de 700 pessoas de todos os cantos do país para escrevermos um manifesto[4] em que ampliamos o movimento para nossos irmãos de liturgia católica, usando como ponto de convergência teológica o credo niceno-constantinopolitano[5]. Nesse grupo, tínhamos muitas pessoas que apoiaram Marina Silva em 2010 e 2014 e sentiram na pele a campanha difamatória a que Marina foi submetida, tanto pela extrema direita lastreada por Silas Malafaia quanto pela máquina de difamação feita pelo PT. Eu descrevi em um “fio” no antigo Twitter tudo que passamos[6] (sim, eu me envolvi nas duas campanhas de Marina à presidência) que produziu efeitos indeléveis sobre todos que viram o quanto a polarização é um meio de nutrição para grupos que almejam o poder no Brasil sem se submeter a um debate crítico de ideias. Já falei dos atores indispensáveis nesse diálogo, agora preciso reforçar o conteúdo a ser discutido.

Se você perguntar, olho no olho, para qualquer cristão no Brasil, se ele gostaria de ter saúde pública de qualidade, educação pública decente para seus filhos estudarem, folga semanal e férias remuneradas, garanto que 90% dirão que sim. Somente isso, coloca a imensa maioria desse grupo em um campo de uma centro esquerda ou de uma centro-direita com viés estatista, tal qual a União Democrata Cristã (CDU) da Alemanha[7]. Agora, se você perguntar se acham que o estado deve legislar sobre como a família deve se constituir, como se deve educar os filhos em casa ou sobre temas sensíveis como aborto e descriminalização das drogas, por exemplo, 90% será contrário a isso. E aí eu pergunto: essas são pautas de esquerda? Não, nunca foram ou deveriam ter sido. Essas são pautas liberais, assimiladas pela esquerda norte-americana e importadas pela nossa esquerda mnoderna e que não dialogam com o povo do Brasil profundo. Nosso trabalho, portanto, deve ser encontrar os pontos em que o diálogo é penetrável e que não colidam com a moral do povo.

Sendo assim, nos obrigamos a dialogar com quem tínhamos pouquíssimas afinidades. É claro que eu iria preferir sentar com a pastora Lusmarina por 3 horas e bater um bom papo a conversar com um Yago Martins, por exemplo, por 30 minutos. Eu teria muito mais afinidade no campo das ciências sociais e humanas com a pastora Lusmarina do que com o pastor Yago Martins. Mas, com quem eu preciso conversar? Quais deles terão mais influência sobre o povo que eu preciso ajudar a entender os prejuízos da radicalização de discursos? Faço mais outra pergunta: a quem a grande massa, o povão evangélico ouviria, a pastora Lusmarina ou, por exemplo, o Cabo Daciolo? O pastor Henrique Vieira ou o pastor Paulo Marcelo, pregador recorrente do congresso dos Gideões? Isso tudo sempre ficou claro para quem de fato está no “chão de fábrica” das igrejas evangélicas, principalmente as igrejas dos bairros.

Então, resumindo, a solução proposta (cuja execução não é simples de forma alguma) é: usar os temas indispensáveis à emancipação dos pobres (saúde e educação pública e universal, impostos progressivos, emprego formal, transporte público e etc), cuja adesão é majoritária e dialogar com as lideranças cristãs dos bairros, das pequenas e médias igrejas com a linguagem que o povo entende, sem querer “catequizá-los” com os iluminismos das ideias dos “iluminados” da esquerda cristã academicista. Lembro dos encontros “às escondidas” que fizemos para Marina com pastores de diversas igrejas de Santa Catarina. Não divulgamos. Nesses encontros, que duravam mais de 3 horas, os pastores podiam perguntar o que quisessem, sem o medo de ver suas perguntas e até sua presença no local divulgadas. Após 2018, fizemos o mesmo com Ciro Gomes, em que ele respondeu dezenas de perguntas feitas por pastores de diversas denominações em um ambiente privado, sem presença de repórteres ou assessoria de imprensa. Também com Daciolo, onde promovemos encontros e o trouxemos ao campo democrático, após ter sido expulso do PSoL por puro preconceito de uma esquerda “iluminada”.
Meu Deus, você deve perguntar, qual o motivo de o pastor Alexandre dar essa volta toda para falar de uma carta da pastora Lusmarina dirigida ao Lula e a presidente do PT, Gleisi Hoffmann? Eu sei que é uma grande volta, mas nesse caso a prolixidade é justificável. Nada aqui é simples. Estamos no auge da maior radicalização de discurso que já tivemos em nosso país e isso depois de mais de 17 anos de governo dito de esquerda. Vamos continuar repetindo a mesma estratégia e esperar algum resultado diferente do que já tivemos até aqui? Isso beira à insanidade!

Agora podemos voltar à carta da pastora Lusmarina. O que ela cobra? Participação nos debates do governo, ser ouvida. E por que? Por ser militante do PT desde 1987 e ter sido leal apoiadora dos governos do PT desde sempre.

Bom, eu vou fazer o papel da pastora Lusmarina, como se eu fosse ela e tivesse o acesso que ela tem, ainda que diminuto, ao governo e vou fazer o papel do Lula, como se eu fosse presidente e pegasse um país rachado como o nosso. Desde já, peço perdão pela minha dupla ousadia, pois não quero nem de longe me comparar a essas duas grandes personalidades. Vamos então a esse exercício imaginativo.
“Querido presidente Lula, sendo eu do Rio de Janeiro, acompanhei o início do governo Garotinho, cuja vice era uma dileta irmã e companheira de partido, Benedita da Silva. Garotinho teve uma ideia: deixou a entrega do cheque cidadão (o precursor do atual bolsa-família) para que as igrejas cadastrassem as pessoas e fizesse a distribuição. Lembro até que um pastor pentecostal, filiado ao PDT, um tal de pastor…não lembro o nome, foi contra isso e rompeu com seu apoio ao governo estadual. Sendo assim, por que o senhor permitiu que o Ministério do Desenvolvimento assinasse um protocolo visando permitir a atuação das igrejas em comunidades periféricas, facilitando o encaminhamento de programas sociais como o Bolsa Família, benefícios previdenciários, o “Minha Casa, Minha Vida”, a implementação do Cozinha Solidária, dentre outros? Não seria repetir o mesmo erro de Garotinho, misturando recursos públicos com o natural interesse das igrejas em servir à comunidade para evangelizar?”

Infelizmente, a pastora não fez essa pergunta. E talvez não tenha feito por não achar nenhum problema em mesclar administração pública com igrejas. ~Eu acho, acho um grande problema e eu já vi isso acontecer no Rio de Janeiro e não foi bom…

Mas, agora, vamos imaginar o que o presidente Lula poderia dizer.
“Querida pastora Lusmarina, posso até estar equivocado em permitir que as igrejas sejam intermediárias de políticas públicas, mas acredito que nas comunidades pobres o que mais tem são assembleias de Deus e outras igrejas pentecostais. Não me lembro de ver igreja luterana ou anglicana nesses locais mais pobres. Também fiquei preocupado com o seu preconceito com as pequenas igrejas majoritariamente neopentecostais. Se existem igrejas assim é porque, de alguma forma, o povo quer isso. O que eu vou fazer? Eles falam a linguagem do povo. Você também escreveu que essas igrejas são marcadas pela “branquitude” mas nessas igrejas tanto os líderes quanto os membros em sua maioria são negros. Você também falou que essas igrejas são marcadas pela “espiritualização de tudo”, mas quem vive na realidade que esse povo vive, é muito mais saudável ver o aspecto espiritual de sua vida, tentar de alguma forma melhorar pela fé. Fiquei até encafifado, pois sei que você é pastora e parecia que eu estava lendo um dos textos que sociólogos agnósticos mandam pra mim sobre as igrejas. Você também falou que o governo tem de regular a formação de pastores, para que eles tenham a obrigação de ter curso teológico. Mas isso, minha querida pastora, vai de encontro à constituição, pois nenhum governo pode legislar sobre a administração interna de uma religião. Você disse assim: “Então, para o funcionamento de igrejas é preciso haver lideranças que possuam formação adequada. Abrir mão desses critérios é adentrar um regime de permissividade melindroso que, a meu ver, possibilitará o retorno de um discurso religioso potencializado e de uma prática religiosa aprofundada de extrema-direita tão logo os botões do autoritarismo latente na sociedade ou do messianismo eleitoral de direita sejam acionados”. Você esqueceu que os ministros do Bolsonaro, que eram evangélicos e pastores, tinham uma excelente formação acadêmica em teologia? O pastor Milton Ribeiro na educação e o pastor André Mendonça na justiça tinham cursos teológicos em boas faculdades e isso não impediu que eles se tornassem ministros leais ao bolsonarismo e fizessem o que fizeram. Por último, me preocupei bastante com essa sua proposta aqui: “Minha proposta é a criação de um comitê composto por teólogos e teólogas que fará a revisão dos currículos dos cursos de formação a serem reconhecidos pelo MEC e que a formação adequada das lideranças seja um critério para a abertura de igrejas.” Você quer que o governo legisle criando critérios para a abertura de igrejas? Isso fere de morte o estado laico! Pensa também na tristeza e ódio que vou causar ao impedir aquele irmão da comunidade que é pedreiro, por exemplo, e que prega de uma forma que o povo dele consegue entender, assumir uma igreja que queira que ele seja o pregador e pastor?”

Uso essa retórica pois imagino que o Lula ainda tenha alguma parte do sentimento do povo nele. E se tem, acredito que seria isso que ele iria ou deveria pensar ao menos. Ademais, a “cobrança de fatura” da pastora (ainda que seja sem intenção) veio justamente por sua dedicação ao PT desde muito tempo, o que justificaria sua cobrança por ser ouvida e ter espaço. E aqui vai minha opinião pessoal baseada na minha experiência e em meus valores cristãos. Não é segredo para ninguém que apoiei Marina e depois o Ciro para presidente. Ambos sabiam de uma coisa: se, por acaso, eles se elegessem, no dia seguinte à posse, eu sairia e continuaria exercendo meu papel de profeta diante do Rei, sem habitar os palácios, mas gritando a partir dos pórticos para que atendessem o clamor do povo pobre desejoso de ser emancipado de sua pobreza. Creio que essa postura é salutar para que possamos sempre estar ao lado do povo e à postos para denunciar os poderosos.
Voltando ao exercício imaginativo, acredito que a conclusão a que o presidente Lula iria chegar é que as últimas pessoas que ele precisaria ouvir quando o assunto é aproximação com os evangélicos seriam os evangélicos progressistas academicistas. Até porque, nem os evangélicos os conhecem. São ícones de uma esquerda que faz “ateusplaining”, tentando impor o que acham que um cristão deveria crer ou não, mesmo não querendo ou não sendo um cristão.


[1] https://www.brasil247.com/blog/carta-a-lula-e-gleisi
[2] Segundo o dicionário americano Merriam-Webster, o termo é usado com desaprovação para referir-se a alguém politicamente liberal (em temas como justiça racial e social), especialmente de forma considerada insensata ou extremista.
[3] https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63165499
[4] https://disparada.com.br/manifesto-cristaos-trabalhistas/
[5] https://www.luteranos.com.br/textos/credo-niceno-constantinopolitano
[6] https://twitter.com/Pr_AlexandreGon/status/1448613228418904069?s=19
[7] A União Democrata-Cristã da Alemanha (em alemão: Christlich Demokratische Union Deutschlands, CDU), também simplesmente referida como União Democrata-Cristã, é um partido político alemão de cunho democrata-cristão e conservador liberal fundado entre 1945 e 1950. A sigla está posicionada na centro-direita no espectro político convencional, com raiz na Doutrina Social Católica.

*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.


Alexandre Gonçalves é pastor da Igreja de Deus  e colunista do The Intercept Brasil, é um dos líderes do grupo Cristãos Trabalhistas, ligado ao PDT. Foi ordenado desde 1994, tendo sido antes missionário atuando em Cuba com implantação de grupos caseiros e em comunidades carentes do Rio de Janeiro. Bacharel em teologia e direito e licenciado em letras, mas sua paixão é a teologia prática. Especializado em implantação de igrejas pelo SEMISUD em Quito, aprendeu os princípios do que chama de “teologia do pobre”. Além de pastor, é servidor público e diretor parlamentar do Sindicato dos Policiais e Servidores da Polícia Rodoviária Federal em Santa Catarina (SINPRF-SC). Siga-o pelo site Teologia do Pobre, pelo TwitterYouTube e/ou pelo Instagram.