Cem dias de governo Lula

Cem dias de governo Lula
Crédito: Folha de São Paulo


Neste mês completou-se cem dias do governo Lula. Sendo eu evangélico há mais de 40 anos e pastor há 28 anos, lembro que sempre houve temores sobre Lula e o PT se ou quando chegassem ao governo. Os temores eram naturais, em virtude do radicalismo incipiente do candidato nos anos 80 e início dos anos 90. Entretanto, em meados de 2014, esse temor virou ódio e teologia de guerra, onde o inimigo deixou de ser o diabo (Efésios 6:11, 12) e passou a ser a ideologia política, mormente, a de esquerda. Mas, assim como podemos verificar nos governos pretéritos de Lula, podemos verificar que nesses 100 dias:
Nenhuma igreja foi fechada;
Os cultos continuam sendo liberados;
O evangelismo é permitido;
Os programas evangélicos na TV continuam;
O aborto não foi aprovado e nem as drogas liberadas.

Claro que houve algumas sinalizações de alguns ministros que talvez desagradaram uma parte considerável de nosso meio, mas nada de concreto se fez.
Portanto, se estas eram as preocupações dos evangélicos, sendo assim, pelo menos por hora (meu tom é irônico, preciso avisar), não há motivos para os evangélicos temerem o atual governo Lula, podendo manter suas atividades normais na vida.
Entretanto, o que deveria ser preocupação de quem conhece o Evangelho de Jesus e absorveu seus ensinamentos para a vida, não foi contemplado pelo governo Lula. Ao contrário: ele deu sinalizações que dão a entender que, aquilo que deveria ser a preocupação de um discípulo de Jesus em relação ao país, não será até o fim de seu governo atendido. O que seriam essas preocupações que nossos irmãos em Cristo deveriam se preocupar mas não se preocupam? Tenha paciência, vou fazer de tudo para explicar.
A opção de Jesus pelos pobres fica clara nos evangelhos. Não falo isso como se Ele não quisesse alcançar os ricos. Mas, Ele deixou claro que sua missão tinha a ver com o cumprimento de uma profecia dita pelo profeta Isaías há 700 anos antes de Ele encarnar no ventre da virgem Maria: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para anunciar a Boa Notícia aos Pobres” (Lucas 4:18 c.c Isaías 61:1). Não há exclusão nessas palavras, ao contrário, pois se Jesus alcança os pobres, isso mostra que Ele quer a todos, como o fez com Zaqueu que, como resultado do Evangelho em sua vida, restituiu tudo que usurpou dos pobres usando sua função pública de cobrador de impostos (Lucas 19:8). Lembremos, no entanto, da advertência de nosso Senhor: “É mais fácil um camelo passar pelo vão de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus” (Mateus 19:24).
Dito isto, não vejo nenhuma preocupação da Igreja com o fato de o atual governo, até o momento, não ter mexido uma vírgula nas estruturas que mantêm o pobre ainda mais pobre e o rico ainda mais rico. Que estruturas seriam estas que se mantêm incólumes e indeléveis e que não causam nenhuma reação de meus irmãos, tão preocupados com a expansão da linguagem neutra?
Comecemos pela taxa de juros. Veja, não sou economista, sou um singelo pastor. Mas, é cediço que as altas taxas de juros em nosso país tem efeito mortal sobre a população pobre e efeito anabolizante sobre o grupo econômico que até na pandemia lucrou exorbitantemente: os bancos e o sistema financeiro. Olhem essa conta: se os juros baixarem apenas 1%, isso representa uma economia na dívida pública da ordem de 40,6 bilhões de reais (!!!). Se esse valor fosse aplicado em programas de transferência de renda, por exemplo, isso representaria 1.800 reais a mais para cada família beneficiária do bolsa família, que não é a melhor e mais profunda solução de emancipação do pobre. Digamos que esses bilhões de reais fossem investidos em obras estruturais (estradas, ferrovias, portos, etc) cuja mão de obra geralmente é em grande número e menos qualificada. Isso representaria quanto em emprego direto e digno ao pobre que, com o suor de seu rosto se emanciparia? Não vejo nenhuma indignação dos meus irmãos evangélicos com essa leniência com os bancos.
E sobre impostos. Ninguém gosta de impostos, mas a Bíblia nos recomenda a pagá-los de forma correta, sem sonegar (Mateus 25:15-22). No entanto, eles são a melhor e mais eficiente forma de se combater a desigualdade social e concentração de renda. Um exemplo: na Alemanha, um país com forte raiz cristã protestante, existe imposto sobre os lucros e dividendos empresariais que varia entre 22 e 33%. Na verdade, apenas o Brasil e a Estônia não cobram esse imposto. E o que isso tem a ver com o pobre? Calma, que chegarei lá.

Em 2019, os bancos distribuíram aos seus grandes acionistas cerca de 37 bilhões. Sabe quanto pagaram de imposto? Nada! Isso mesmo que você leu: nada. Imagine o seguinte: José da Silva, de São Paulo, sai de seu trabalho de servente em uma obra e recebe uma ligação de sua esposa pedindo que ele vá ao mercado comprar um quilo de feijão, pois ela precisa para fazer a comida de seus 3 filhos. Pela ligação, dona Maria, esposa do seu José, pagou 30% de impostos e sobre o feijão, item da cesta básica, seu José pagou 13% de imposto. Vamos mais adiante. Imagine o Paulinho, rapaz feliz que adquiriu sua motinho ano 2010 e vai começar a trabalhar como entregador nas ruas perigosas de São Paulo, sem nenhuma proteção social em caso de acidentes, doenças; sem férias remuneradas, décimo terceiro ou folga semanal. Ele vai pagar de IPVA da sua moto cerca de 2% do valor da moto por ano. Agora, imagine o apresentador Luciano Huck, homem rico e de posses, chateado por ter de enfrentar o trânsito pesado de São Paulo e resolve comprar um helicóptero. Sabe quanto ele vai pagar de imposto sobre a propriedade de sua aeronave? Adivinha…zero, nada, nadica de nada. Mas, eu não vi nenhum irmão em Cristo indignado com o fato de nesses cem dias de governo Lula, ele e sua equipe não terem nem sequer proposto mudar qualquer uma dessas coisas. Isso afeta diretamente a concentração de renda, pois faria incidir menos impostos sobre o consumo dos pobres desse país. Lembre que dinheiro não se cria do nada. Se alguém concentra muito, faltará para outros, logo o imposto é a melhor forma na democracia de se equilibrar a pirâmide social.
Também não vi meus irmãos indignados com o reajuste vergonhoso de apenas 18 reais no salário mínimo. Mas eu vi alguns indignados com o fato de pessoas que professam a fé de matriz africana terem visitado o palácio da Alvorada.
Enfim, minha avaliação dos cem dias de governo Lula é a seguinte: na macroeconomia, continuidade do governo Temer e Bolsonaro; nas reclamações dos meus irmãos evangélicos, nenhuma ou pouca preocupação com o aumento da pobreza.

*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.


Alexandre Gonçalves é pastor da Igreja de Deus  e colunista do The Intercept Brasil, é um dos líderes do grupo Cristãos Trabalhistas, ligado ao PDT. Foi ordenado desde 1994, tendo sido antes missionário atuando em Cuba com implantação de grupos caseiros e em comunidades carentes do Rio de Janeiro. Bacharel em teologia e direito e licenciado em letras, mas sua paixão é a teologia prática. Especializado em implantação de igrejas pelo SEMISUD em Quito, aprendeu os princípios do que chama de “teologia do pobre”. Além de pastor, é servidor público e diretor parlamentar do Sindicato dos Policiais e Servidores da Polícia Rodoviária Federal em Santa Catarina (SINPRF-SC). Siga-o pelo site Teologia do Pobre, pelo Twitter, YouTube e/ou pelo Instagram.