Como dialogar com pastores fundamentalistas - um estudo de caso

Como dialogar com pastores fundamentalistas - um estudo de caso

Em 2018, poucos dias que antecederam o segundo turno das eleições presidenciais, o Rapper Mano Brown subiu ao palco de um comício no Rio de Janeiro e fez a seguinte afirmação: “Tem uma multidão que precisa ser conquistada ou vamos cair no precipício. […] Deixou de entender o povão já era. […] tem que entender o que o povo quer. Se não sabe, volta pra base e vai procurar entender”. O meu trabalho como pastor e ativista social em um ex-lixão na Baixada Fluminense é inspirado nesse questionamento.

Meu trabalho como pastor hoje inclui dialogar com pastores evangélicos, predominantemente pentecostais, e com uma perspectiva teológica fundamentalista. Mas é com eles que eu devo dialogar para que o campo evangélico, que é em grande parte preto, pobre e periférico, não fique ainda mais refratário de ideias reacionárias do ponto de vista político.

Quem eu sou e o que eu faço

Sou um pastor evangélico de tradição batista que, nos últimos anos, caminha em uma configuração eclesiástica chamada igreja simples e orgânica. A Igreja Cristã Redenção Baixada, da qual sou pastor e mentor, se define como um movimento economicamente pobre e estruturalmente aberto. É um tipo organizativo horizontal, sem hierarquias ou mecanismos de gestão organizacional. Acreditamos na economia solidária do Reino de Deus e não no modelo igreja-negócio, consolidado no Brasil.

Na Baixada Fluminense, lutamos e trabalhamos para experimentar coletivamente um novo jeito de ser igreja: mais pública, simples, inclusiva e militante. Uma igreja encarnada nos dilemas e potências de seus territórios base. Uma igreja cidadã, que pensa e vive o Evangelho sem descolar os pés do chão da vida. Queremos ser uma comunidade socialmente justa, politicamente protestante, economicamente solidária, ambientalmente saudável e espiritualmente celebrativa.

Nossas reuniões ocorrem no Colaboração Space, um coworking pioneiro situado em Nilópolis. O espaço tem uma estrutura moderna e funcional, com um auditório com capacidade para 120 pessoas, equipado com telão, som e microfones. Essa escolha é fruto de nossa compreensão missional, de que precisamos estar alinhados a pessoas que vivem em um contexto disruptivo e inovador, que buscam um ambiente descontraído e informal, mas que também apresente uma espiritualidade integral e engajada com as demandas dos moradores da Baixada Fluminense. Ser uma comunidade culturalmente relevante significa decidir de maneira estratégica que não queremos dialogar com pessoas e crenças que produzem todo tipo de violação de direitos.

Em paralelo a esse trabalho, atuo também como pastor, pedagogo e articulador territorial no Jardim Gramacho.

Jardim Gramacho

Desde 2016, Jardim Gramacho é um grande latifúndio que cabe perfeitamente no meu coração. Localizado no município de Duque de Caxias e a 30 quilômetros de Copacabana, o Jardim Gramacho é um bolsão de pobreza extrema que lembra um cenário distópico.

O local abrigou o maior lixão da América Latina por três décadas. Ele foi fechado em 2012, mas os seus moradores continuam no local e vivem com menos três reais por dia. O bairro tem inúmeros trechos sem acesso à água e saneamento básico. A eletricidade é fornecida por gatos e picos de energia, que estragam os eletrodomésticos. As casas são feitas de portas de armário e chapas de madeira, e não são resistentes à chuva. Esse cenário distópico está a 30 quilômetros de Copacabana.

Como dialogar com pastores fundamentalistas

Mesmo tendo uma perspectiva teológica não fundamentalista, me relaciono intencionalmente com pastores neopentecostais de Jardim Gramacho. Em parceria com essas lideranças, articulamos inúmeras ações de solidariedade e cuidado em favor dos condenados da terra.

Há algumas razões pra que eu consiga estar lá na ponta, e não me perder em discussões que acabam prejudicando o que de fato é o mais emergencial: pessoas em situação de vulnerabilidade social.

Aqui vão algumas lições que venho acumulando para dialogar com pessoas de um campo ideológico diferente do meu.

  1. Respeite-os

A importância de respeitarmos lideranças religiosas teologicamente diferentes da gente, eu as percebo como pessoas sérias e piedosas, interessadas na construção de uma sociedade mais justa. O respeito com quem tem posições diferentes cria um ambiente propício para o diálogo e a construção de consensos.

As lideranças religiosas de Jardim Gramacho vivem em um bioma onde o lixo e toda sua cultura deletéria, promoveu afetos, relacionamentos e memórias. Hoje tais lideranças são responsáveis por guiar e orientar as pessoas em sua caminhada espiritual. O meu respeito por esses pastores não é resultado de oportunismo, mas do reconhecimento do valor desse trabalho e a sua contribuição para a sociedade.

Não concordo com tudo que eles dizem, mas discordamos de maneira respeitosa, e demonstro, nos nossos encontros, que eles são pessoas que vivem sua fé da melhor maneira possível.

Escolha temas/ênfases em comum
Em vez de falar sobre assuntos que nos dividem - como sexualidade, aborto e outros itens da pauta identitária evangélica - escolho temas que aproximam as nossas experiências. Esses temas podem ser questões sociais, como a insegurança alimentar e a cultura de paz e a pandemia do Coronavírus. A fome que atingiu também os membros das igrejas evangélicas do Jardim Gramacho foi o principal motor de unidade e assertividade. Com o apoio dos pastores locais, que colocaram suas preferências ideológicas de lado, conseguimos ampliar nosso protagonismo e influência entre essas lideranças.

Fale de maneira simples/acessível
Estamos falando de brasileiros pobres que, quando estudaram, cursaram escolas públicas e, em geral, nao concluíram o ensino médio. Elas também são brasileiros que estão expostos cotidianamente a formas de violência relacionadas a quem elas são: pela cor da pele, a maneira de se vestir e falar, pelo trabalho que elas tem. Isso produz uma espécie de “trauma de classe” que pode ser superado a partir de uma escuta atenta e interessada associada a falas claras, evitando jargões e expressões coloquiais que podem ser difíceis de entender.

Concluindo…

Segundo o Teólogo C.S.Lewis, o mundo é um território ocupado pelo inimigo e o Cristianismo é a história de como o Rei Justo desembarcou (poderíamos dizer, desembarcou disfarçado) e nos chama para uma grande campanha de sabotagem. Essa operação humanitária, só será viável conectando pessoas de campos ideológicos/religiosos tão diferentes entre si, contudo alinhados com valores do Reino de Deus se confunde com o bem viver, que são a saber: paz, justiça, igualdade e comensalidade. A materialização desses predicados só será possível quando removermos as cercas e os muros que tanto nos querem separar como humanidade.


Vladimir de Oliveira (Vlad) é Pastor na Igreja Cristã Redenção Baixada e Coordenador Pedagógico e Articulador Social na Baixada Lab, uma iniciativa de formação antirracista para adolescentes/jovens de Jardim Gramacho. Nos últimos anos tem desenvolvido uma proposta de igreja na Baixada Fluminense que seja simples, orgânica, afirmativa e também focada em direitos humanos, e na construção de projetos de intervenção pedagógica/social em territórios periféricos.