Como o Bolsonarismo tem afetado a escolha de lideranças evangélicas.

Como o Bolsonarismo tem afetado a escolha de lideranças evangélicas.

Uma vez completada a etapa de expurgo de lideranças democráticas, cabe às organizações religiosas preencher as lacunas, as vagas que foram abertas. Aqui o bolsonarismo tem estendido seus tentáculos também, através do seu viés religioso, de sua legitimação pelo fundamentalismo. O banimento de bons líderes, seu escanteamento sistemático em processos de sucessão pastoral e de organizações cristãs, são alguns dos muitos exemplos da “siberização” que acomete diferentes grupos religiosos no Brasil, mesmo após a eleição de Lula. Todavia, nem todos deixam rastros, como a Convenção Batista do Estado de Pernambuco, doravante CBPE.

A CBPE teve até novembro passado em seus quadros o reconhecido líder e administrador batista, Pr. Edvar Gimenes. Edvar era, até pouco tempo atrás, o líder mais lúcido e inteligente com assento no Conselho da Convenção Batista Brasileira (CBB). Seu histórico como liderança batista, em boa parte concentrado pelo nordeste brasileiro, inclui o pastoreio de igrejas de grande expressão no âmbito dos batistas, dentre as quais destaco a Igreja Batista Emanuel em Boa Viagem (Recife-PE), e a Igreja Batista da Graça (Salvador-BA). Foi também diretor do Colégio Americano Batista em Recife. Um líder provado e aprovado, que se tornou perseguido e desqualificado, por seus pares, por votar no presidente Lula. Sua demissão revela bem o desgaste que o fundamentalismo impinge sobre a estrutura denominacional, bem como faz questão de desconhecer a grandeza do legado de quem sempre pensou fora da caixa. Edvar é um testemunho vivo de que é possível estar na caixa, mas com o pensamento fora dela.

Para se recompor, a CBPE divulgou um edital em seu site, dando ampla concorrência à vaga para o seu cargo de Secretário Geral. Não obstante o louvável ato de divulgar o edital, impressiona, no mau sentido do termo, os termos constantes nele que, embora pareça ser bem-feito, alterna vícios, incompletudes e impropriedades.

A incompletude do edital, como você mesmo poderá verificar, vai desde a omissão da contrapartida do empregador, à proposta de esquiva, de falta de retorno a todos os candidatos que resolverem participar de tal processo seletivo.

No campo das impropriedades requeridas pelo edital está a exigência de que no currículo vitae conste informações sobre a esposa e os filhos (item 4.2). Ora, se o contrato de trabalho será celebrado somente com o a figura paterna, não cabe nenhum tipo de alusão aos demais membros da família. De igual modo, em um grupo religioso com tantos leigos e com tantas mulheres aptas (como a relatora de tal comissão), chega a ser um acinte restringir aos pastores-homens, a vaga a ser preenchida. Especialmente quando falamos em uma denominação que se propagou no país com um discurso anticlerical, calcado em uma postura anticatólica.

Todavia, é no campo do que chamei de vícios que a infelicidade do edital se torna mais evidente. Primeiro por sua pretensão de requerer uma visão conservadora dos batistas. Ora, o que isso quer dizer? Seria a defesa da tese de os batistas são conservadores? Tal pretensão seria uma falácia porque os batistas, que nasceram casados com o proto-liberalismo inglês, se organizam em igrejas autônomas. A celebração da liberdade individual, na eclesiologia batista, encontra eco na liberdade das igrejas, na sua autonomia. Assim como não se pode dizer que todos os brasileiros são petistas, bolsonaristas, comunistas, de igual modo não se pode dizer que as igrejas batistas são conservadoras. A pluralidade é uma marca identitária dos batistas, o que implica em dizer que os batistas são não só conservadores, mas progressistas; não só de direita, mas de centro e de esquerda.

Outro vício é o requisito de não estar “vinculado, envolvido e nem militante de partido político”. Ora, em um país partido, em que muitos pastores bolsonaristas não se contentaram em disseminar fakenews em suas redes, mas em fazer campanha ostensiva em suas igrejas, transformando-as em comitês eleitorais, vai ser muito difícil encontrar alguém que tenha passado impolutamente por esse processo. Para aqueles que tentarem esconder, apagando as postagens e vídeos, lembrem-se que “nossa senhora dos prints” está mais atuante do que nunca.

O edital pede caráter ilibado (alínea “c”), mas por alguma razão distingue esta marca da vida moral irrepreensível. Parece que para a liderança batista pernambucana, as duas coisas são diferentes... De modo similar, o edital preconiza um candidato com vida familiar exemplar (alínea “n”) para, logo depois no item 2.1, reforçar: “ser casado, com mulher e bem casado”. Este enfático detalhamento, esta heteronormatividade na seleção, seria um daqueles momentos de ato falho, em que o preconceito aflora? E mais: como mensurar um bom casamento, uma família exemplar? Ao exigir tais requisitos de um pastor batista, a própria comissão reconhece tacitamente a existência de pastores sem família exemplar (seja lá o que isso queira significar) e também com casamentos falidos, de fachada. Note bem: ao mesmo tempo que a comissão privilegia clericalmente a figura pastoral masculina, ela evidencia os problemas que esta traz consigo. Com tantas rusgas assumidas tacitamente pela comissão, seria melhor mesmo pensar em um pastor para o cargo?

Como último vício, destaco a exigência de “vida financeira equilibrada” (alínea “o”), a qual sofre reforço no item 2.8 que requer “vida financeira organizada e de bom testemunho”. Não só: pede antecedentes criminais e SPC-SERASA. Este pedido para o cargo de gestor administrativo não é estranho; esquisita é a ênfase que novamente coloca a figura pastoral, sua própria liderança, em xeque. Quer dizer que há pastores batistas com “papagaios” voando por aí? É isto mesmo CBPE que vocês querem atestar?

Ao terminar este texto o faço com duplo sentimento: por um lado, constatar cada vez mais o tamanho da falta que um líder como Pr. Edvar faz e fará à CBPE; por outro, manifestar minha suspeição de que ou a CBPE terá que transigir com seus próprios critérios, ou ela terá a felicidade de encontrar alguém tão pequeno, mas tão pequeno, que se encaixará no molde por ela delineado. Neste caso, a sombra e a saudade da gestão Edvar Gimenes se tornarão tão visíveis, que possivelmente obstaculizará o próximo Secretário Geral. Mas esta conta, convenhamos, não é dele; é dela (CBPE).

* Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.


Pr. Dr. Sérgio Ricardo Gonçalves Dusilek  é Mestre e Doutor em Ciência da Religião (UFJF/MG); Pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Filosofia da Religião, da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF/MG); Pastor na Igreja Batista Marapendi (RJ/RJ); Professor do Seminário Teológico Batista Carioca. Autor de Bíblia e Modernidade: A contribuição de Erich Auerbach para sua recepção e co-organizador de: Fundamentalismo Religioso Cristão: Olhares transdisciplinares; e O Oásis e o Deserto: Uma reflexão sobre a História, Identidade e os Princípios Batistas. Contato: sdusilek@gmail.com