Compreendendo a Espiritualidade, sua relação com o ser e o atual vazio humano

Compreendendo a Espiritualidade, sua relação com o ser e o atual vazio humano

O termo “espiritualidade” é cunhado de forma mais precisa no século 17 na França e o seu berço de nascimento é de origem cristã. Assim também a terminologia “mística” tem sua origem no cristianismo. Ela ocorre de forma inesperada, ela representa um novo tipo de consciência. A consciência cósmica; coloca o indivíduo num novo patamar de compreensão da realidade.

A mística aparece como expressão que se usa para textos ou níveis de interpretação quase que escondidos no texto. À medida que o processo se avança na história do cristianismo a palavra mística passa a ser usada para alteração que acontece na alma quando você conhece muito o texto. Tem-se uma intimidade muito grande com o texto sagrado. A pessoa domina tanto, rumina tanto o texto, se aprofunda tanto nas questões mais agudas do texto que isto chega a ponto de ir alterando o que poderíamos chamar de percepção cognitiva das coisas. O intelecto é todo modificado.

A ideia de espiritualidade está associada a outro nível de consciência. Outro nível de experimentação do cotidiano. É o ponto mais alto da mente humana. Na verdade, é um conceito que vem de Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.) – o conceito de intelecto. Aristóteles entra na teologia latina no início do século 13, tendo Tomás de Aquino (1225 – 1274) o seu grande defensor. Nessa linha se constrói a ideia de um intelecto que independe da matéria. Nesse sentido, reforça a ideia de que nosso espírito sempre está contaminado por elementos não espirituais – a matéria.

O místico é aquele que está atento não aos porquês muito distantes, mas às raízes vitais das coisas e pessoas totalmente próximas a nós. Novos olhos para ver a vida em outros nexos. Ouvidos para perceber a batida do coração do universo. Por isso, a mística não é uma profissão.

A experiência mística é um evento cognitivo. Ela afeta seu modo de ver o mundo, sua interpretação da realidade. Nesta experiência o pé se fixa mais no chão da vida. É criada no interior do sujeito uma sensibilidade mais aguçada com as dores do mundo e enxerga a transitoriedade das coisas. Engana-se quem acha que a experiência mística é alienação, êxtases e estados alterados. Claro que o indivíduo pode ser tomado de assalto pela presença do divino, mas, sobretudo, a relação com o divino é torna-lo mais humano, e esta humanidade ser uma referência de gente como o sagrado sonhou para a humanidade.

É dentro desta compreensão de ser humano finito, transitório e efêmero que a espiritualidade saudável nasce. Não somos seres autossuficientes, eternos, semideuses ou que o universo gire em torno de nós. Não! Vivemos num solo da falibilidade. Nos falta algo. Nascemos com uma fratura existencial. No século XX, a mística Simone Weil (1909 – 1943) disse: “O contato com as criaturas humanas nos é dado através do sentido da presença. O contato com Deus nos é dado através do sentido da ausência”. Em que mundo você vive? Já se fez esta pergunta? É um mundo estranho. Parece que está do avesso. Quais definições você usaria? Talvez você pense aí: “esta análise é muito pessimista”. Não acho que o mundo irá melhorar. Não precisa ser tão ruim ou mal como está, mas acreditar que irá melhorar, jamais.

É verdade que o mundo tem beleza e coisas extraordinárias. Por exemplo, a maternidade, a cura de uma pessoa em estado terminal, a reconciliação entre pessoas. Existe sim beleza na vida, mas o mundo o qual vivo é marcado por dores, traumas, sofrimentos e grandes angústias.

É neste vazio e incompletude que o sagrado age. Na cultura hebraica existe uma palavra chamada “ex nihilo” que significa “a partir do nada”. O divino sempre faz algo a partir do nada. Quando a matéria foi reduzida ao nada, o surpreendente acontece. Na experiência da ausência o ser humano percebe quem é – nada.

A espiritualidade tem a ver com a prática e o grau de intimidade que os santos têm com Deus. Há uma diferença ontológica do ser humano e Deus. Encontramos isto no encontro de Deus com Moisés quando Deus disse: “eu sou – eu serei aquele que serei”. Não há declinação no hebraico no presente. Nesta diferença ontológica Deus é, enquanto o ser humano é por graça. Por isso, se encontra mais graça na condição do vazio do que numa posição pecadora de se auto-afirmar. Por isso Soren Kierkegaard (1813 – 1855) afirmava que só quando algo é reduzido a nada é que Deus pode fazer algo novo.

Este sentimento de que nos falta algo nos acompanhará até a morte. É como disse o sábio hebreu, Salomão, Eclesiastes 3.11 “Tudo fez Deus formoso no seu devido tempo; também pôs a eternidade no coração do homem”. Não fomos feitos para esta realidade. Nada aqui nos satisfaz. É correr atrás do vento.

Christopher Dawson (1889 – 1970), boa parte de suas obras publicadas pela Editora É Realizações, defendia que quando se perde a ideia de espiritualidade, no processo de secularização da cultura, a realidade se desfaz. Tendo em vista que a visão de espiritualidade medieval dá a compreensão do entrelaçamento da cultura ou realidade. Ou seja, é algo integral – vida da inteligência, a vida da oração e o trabalho. À medida que a secularização se instala, a vida espiritual vai se desfazendo e por sua vez a cultura se dissolve. A cultura perde o valor. É como se tivesse a mesma importância um pão croissant e a obra de Shakespeare. Por quê? Porque tudo é cultura. Perde-se uma noção de hierarquia das coisas. Quando se perde o ordenamento das coisas no mundo tudo vira mera banalidade ou futilidade. As coisas passam a se resumir em si mesmas. Ou seja, trabalhar é só para ganhar dinheiro, por exemplo. Perde-se a noção do que ele significa na prática e o seu resultado social. Corpo vira só instrumento de consumo. Quando a vida espiritual fica só no espiritual gera uma contemplação infantil e abobada da realidade. Quando o material se separa do espiritual tudo fica mero materialismo.

Há uma dimensão prática e concreta da vida. A vida do trabalho organiza a vida espiritual. A vida espiritual dá sentido à vida do trabalho. A religião é o sistema que reúne grandes narrativas cósmicas de teorias ou ideias gerais a práticas cotidianas.  As narrativas cósmicas dão sentido às práticas e as práticas dão conteúdos fáticos. O que é isto? É o conteúdo de realidade. São os fatos concretos da vida. Ou seja, é o encontro do espírito e a carne. Portanto, pensar em espiritualidade além de ser uma ciência do coração ou do intelecto, ela é uma prática da vida.

*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.


Christopher Marques é Bacharel em Teologia pela Universidade Metodista de São Paulo, Mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Pós-Graduado em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Psicanalista Clínico pela Faculdade Metropolitana de São Paulo. Professor convidado da Faculdade de Medicina Santa Marcelina e membro do grupo Coalização Inter-Fé que desenvolve pesquisas na área da espiritualidade e ciências. Autor dos livros “Um novo olhar para a missão da Igreja” (Editora Reflexão, 2015), “O que pensa a fé protestante sobre a política, cultura, sustentabilidade, trabalho e dignidade humana” (Editora Fonte Editorial, 2017), “Quando a Vontade de Viver Vai Embora” (Editora Paulus, 2019) e “Deus fará maravilhas: Vivendo o poder do impossível diante das dores da vida” (Editora GodBooks, 2023).