Comunidades terapêuticas desempenham papel social relevante

No último domingo, 19, o programa Fantástico da Rede Globo transmitiu uma reportagem sobre crimes cometidos no interior de algumas comunidades terapêuticas. Para quem tem algum conhecimento prévio sobre elas, a referida reportagem talvez soe generalizante. É verdade que diante dos trechos das intervenções de Ricardo Valente, psicólogo e diretor da Federação de Comunidades Terapêuticas, o espectador é convidado a refletir sobre a real dimensão da atuação nacional dessas comunidades. É verdade ainda que a reportagem em questão menciona ao espectador que o trabalho jornalístico empreendido se baseou na realidade de poucas comunidades. No entanto, ainda assim sou da opinião de que o enfoque predominante na reportagem é generalizante.

Como tenho ciência de que minha opinião parte em grande medida da minha trajetória profissional, gostaria de compartilhar um pouco de minha experiência, no intuito de contribuir para o debate sobre as comunidades terapêuticas. Isso porque no passado eu atuei como referência técnica em saúde mental do Aliança pela Vida, um programa criado pelo governo de Minas Gerais que nasceu vinculado a três Secretarias (Saúde, Desenvolvimento Social e Defesa Social). Nesse programa atuavam, além de mim, um enfermeiro e uma psicóloga, todos contratados como técnicos encarregados de visitar as comunidades terapêuticas. No meu caso, em função de minha formação em assistência social eu era técnica vinculada à Secretária da Saúde, posto que passei a ocupar quando estava concluindo uma especialização em saúde mental. A finalidade de tais visitas consistia em apurar se as comunidades atendiam aos critérios que a legislação de saúde mental impõe para autorizar a transferência de verbas públicas para o orçamento de uma dada comunidade. Com base naquilo que pude constatar ao longo de minha atuação no Aliança pela Vida, como ponto de partida, posso afirmar que existem comunidades terapêuticas que realmente funcionam, isto é, que atendem aos critérios exigidos pelo Estado, e existem outras que não funcionam.

Durante o período em que trabalhei nesse programa, constatei o credenciamento de dezenas de comunidades terapêuticas. O processo até a aquisição desse credenciamento era extremamente rigoroso e muitas vezes se estendia por um espaço considerável de tempo. A demora se explicava pelo fato de que nossas equipes precisavam realizar não uma, mas várias visitas.

A lista de critérios adotados para o credenciamento das comunidades terapêuticas também ajuda a explica a extensão e o rigor do processo. Uma comunidade somente poderia estar habilitada a receber verba pública se possuísse em seu quadro de funcionários enfermeiros, técnicos de enfermagem (os profissionais responsáveis, dentre outras coisas, pela organização da distribuição dos medicamentos), assistente social e pelo menos um psicólogo. Havia uma fiscalização atenta no sentido de investigar se esses profissionais de fato estavam diariamente presentes no espaço da comunidade, como a legislação requeria. Além disso, era exigido que cada comunidade apresentasse ao Estado um projeto terapêutico geral da comunidade e um projeto terapêutico para cada indivíduo acolhido.

Tais critérios, como é possível observar, consideram a importância da ciência, da atuação dos profissionais da saúde no enfrentamento dos problemas de saúde mental relacionados ao uso de drogas. Por exemplo, um dos critérios estabelece que uma comunidade terapêutica não está autorizada a acolher uma pessoa que esteja vivenciando uma fase de abstinência. Nesses casos, caberia à comunidade orientar o sujeito a contatar o serviço de saúde mais indicado. Somente depois disso e desde que obtivesse a liberação fornecida pelo psiquiatra, registro obrigatório mesmo em caso de o indivíduo não possuir outro transtorno mental associado ao transtorno provocado pelo uso de drogas, a comunidade estaria autorizada a acolher o indivíduo.

No que diz respeito às comunidades terapêuticas direcionadas para o público adolescente, naquela ocasião existia apenas uma no estado de Minas Gerais, algo em si problemático quando levamos em consideração que a legislação não permite que adultos e jovens convivam no mesmo espaço de uma comunidade terapêutica. No tempo em que atuei como técnica, presenciei casos de descredenciamento de comunidades que infringiam essa regra.

A reportagem do Fantástico menciona o fato de que as comunidades denunciadas situam-se em espaços isolados e apresenta juízos que questionam a efetividade dessa medida para o tratamento do usuário de substância química. Entendo que em certa medida esse fator de isolamento, tomado aqui separadamente, possua uma lógica. De 2014 a 2016 trabalhei num serviço de acolhimento que se propunha antes de tudo a afastar a pessoa dos locais onde ela poderia ter fácil acesso às drogas.

A grande questão é que não existe uma receita pronta que poderia orientar todos os casos de vício em drogas. Então o isolamento é uma medida que de fato pode produzir um resultado positivo para o tratamento de algumas pessoas. Para outras pessoas o tratamento mais adequado pode consistir em visitas ao Caps AD (Centro de Atenção Psicossocial - Álcool e Drogas), ou mesmo em um acompanhamento ambulatorial no próprio posto de saúde, como pude presenciar na ocasião em que fui assistente social do Núcleo de Apoio à Saúde da Família. O tipo de tratamento mais adequado vai depender ainda de outros fatores, como o tempo em que a pessoa está usando determinada droga e o nível de seu consumo. Aliás, por isso mesmo em nossa atuação no Aliança Pela Vida exigíamos que cada comunidade terapêutica apresentasse um projeto terapêutico para cada um dos residentes atendidos.

Sobre a questão do traço religioso das comunidades terapêuticas, enfatizado pela reportagem do Fantástico, penso que também é necessário considerarmos os exemplos positivos. Na época em que eu trabalhava como técnica, uma pessoa muito próxima da minha família precisou do atendimento de uma comunidade católica que já funcionava há 30 anos em Minas Gerais. Embora eu seja evangélica e embora essa pessoa tenha sido criada por uma família evangélica, não podemos deixar de reconhecer a importância da ação dessa entidade católica. Além de ter oferecido um tratamento ótimo para essa pessoa, o respeito dessa comunidade terapêutica para com a religiosidade dos indivíduos tratados foi algo que me marcou. Ninguém lá era obrigado assistir à missa, por exemplo. Se alguém desejasse a assistência de um pastor, estava autorizado a receber sua visita. A própria entidade promovia cultos ecumênicos. No caso dessa comunidade a que eu me refiro, diferentemente do que se vê na reportagem exibida pelo Fantástico, a espiritualidade não operava em prejuízo da boa ação terapêutica. Pelo contrário, na comunidade católica que acolheu meu familiar a espiritualidade não obstruía a parte laboral. Eles tinham uma psicóloga e uma assistente social que desempenhava um trabalho muito importante, de atrair os familiares dos sujeitos que estavam em tratamento, de promover reuniões mensais para avaliar o desenvolvimento das ações.

A reportagem do programa Fantástico trata ainda de denúncias graves contra os direitos humanos, incluindo a denúncia de torturas, ou de cárcere compulsório. Nas comunidades credenciadas constatei coisa diferente desse tipo de barbárie. A começar pelo fato de que a opção de permanecer sob o tratamento oferecido pela comunidade cabe unicamente à pessoa. Os profissionais das comunidades até tinham a prática de ir atrás da pessoa, para convencê-la a aderir ao tratamento, mas a decisão caberia antes de tudo a ela.

Em resumo, existem comunidades terapêuticas que funcionam sim, ao contrário daquelas investigadas pela reportagem do Fantástico. O reconhecimento dos exemplos positivos que constatei não exclui a gravidade das denúncias trazidas pela reportagem aqui aludida, tampouco questiona a opinião de quem defende que o status de importância que essas comunidades vêm alcançando ultimamente se deve à falta de investimento em serviços de saúde pública. Os casos relatados são reais e o questionamento acerca da insuficiência dos serviços oferecidos pelo Estado é relevante. Independentemente disso, acredito que essas comunidades de atestada eficácia e que operam dentro da leia mereceriam receber maior atenção na reportagem divulgada pelo programa da Rede Globo. O exemplo das comunidades que dão certo tornaria mais complexa e menos generalizante a discussão desse tema.

Enquanto assistente social e especialista em saúde mental, defendo que o Estado deve investir na fiscalização. As comunidades terapêuticas exibidas pelo programa televisivo mais parecem um manicômio, tão absurda é a situação denunciada.  No que diz respeito ao problema da ausência de investimento em saúde pública, reitero que acho relevante o questionamento de que em algumas localidades as comunidades terapêuticas são superiores em número em relação aos equipamentos de saúde.

Um possível balanço dessa discussão poderia residir no entendimento de que o Estado precisa sim ampliar a rede de equipamentos de saúde, sobretudo a disponibilidade de  Caps -AD, e que isto não precisa implicar na extinção do investimento público nas comunidades que realmente funcionam. Infelizmente, algumas comunidades terapêuticas, como é o caso daquelas mencionadas na reportagem do Fantástico, tornaram-se apenas um meio de se ganhar dinheiro. Primeiro, seria o caso de sublinharmos a importância da fiscalização do funcionamento dessas comunidades, segundo a importância dos mecanismos capazes de efetivar o credenciamento oficial de uma comunidade terapêutica, e terceiro, mais uma vez, a importância do investimento em equipamentos de saúde, até mesmo como medida de contenção do surgimento de comunidades terapêuticas clandestinas.