Cristãos mal educados: evangelicalismo não alforria os pretos

“A religião é o suspiro da criatura assediada, o coração de um mundo sem coração, assim como também o espírito de uma época sem espírito.”

— Karl Marx, Crítica da Filosofia do Direito de Hegel.

No seu livro Uma história do povo inglês no século XIX (1962), o filósofo e historiador francês Élie Halévy argumentou que a estabilidade da sociedade inglesa durante os finais dos séculos XVIII e XIX — quando o resto da Europa sofreu convulsões revolucionárias — se devia em parte significativa à influência do evangelicalismo. A classe operária inglesa não conseguiu desenvolver a esperada consciência revolucionária, como aconteceu na França e na Alemanha, porque os ‘intelectuais orgânicos’ da classe foram absorvidos por movimentos evangélicos.

Segundo Halévy, o evangelicalismo ofereceu vantagens sociais e materiais aos membros respeitáveis das ordens inferiores, e ajudou a prevenir a resistência social e ideológica à exploração capitalista. A pregação evangélica ensinava às classes trabalhadoras a salvação individual em vez da salvação coletiva, e a mudança pessoal em vez da mudança política. Essa espécie de educação religiosa desencadeou tendências incipientes à revolta popular, e sem protesto os pastores evangélicos conduziram suas ovelhas ao matadouro da pobreza, precariedade e violência da chamada Revolução Industrial.

Pois a tendência persistente do evangelicalismo é pactuar com o domínio do capitalismo e dos seus catalizadores políticos. A tendência geral, aliás, é para os evangélicos ajustarem sua fé e prática à economia política do capitalismo, por vezes reconhecendo as contradições perversas mas nunca resolvendo-as. Nesse sentido, a religião evangélica negocia estas contradições em troca de um armistício precário com o regime capitalista.

Mas, nestes dias, o evangelicalismo deve acomodar um capitalismo ainda mais voraz e destrutivo e ainda mais endurecido em suas formas cada vez mais misantrópicas e cleptocráticas, perpetrando crimes cada vez mais flagrantes.

À medida que o neoliberalismo entrava numa nova fase de declínio, com uma concentração galopante de mais e mais riqueza em cada vez menos mãos enquanto despojava o planeta e explorava excessivamente os trabalhadores, a tese de Halévy chegou à América Latina como uma atualização norte-americana do setor anglo-atlântico do século XVIII, que vestiu o punho de ferro do capitalismo com uma luva de veludo da piedade evangélica. Tal é a trajetória política do evangelicalismo no Brasil no novo milênio.

Em muitas igrejas pentecostais e neopentecostais nas periferias das grandes cidades e nas aldeias remotas do Interior — precisamente comunidades concretamente desfavorecidas pelo neoliberalismo — a educação política é responsabilidade de pessoas não responsáveis, criando uma galera perigosa de cristãos educados na escola da necropolítica. São cristãos educados para pensar mal de seus concidadãos, para falar mal de seu próximo e para agir mal contra ele, sem culpa nem consciência. Por fim, acabam por ser cristãos educados para o mal — cristãos mal-educados.

Durante o golpe parlamentar contra a Presidenta Dilma Rousseff, Eduardo Cunha liderou a bancada evangélica para impedir o estabelecimento de normas para garantir os direitos reprodutivos de mulheres e instigou o processo parlamentar que expulsou a presidenta eleita pelo voto popular — a primeira na história do país. O presidente atual se gaba de ser um ‘presidente cristão num país secular’, e presentemente o governo do  Planalto está cheio de pastores evangélicos — a maior parte deles batistas e presbiterianos da classe média: as igrejas pentecostais e neopentecostais, onde a classe trabalhadora predomina nos púlpitos e nos bancos, ainda  assim só alcançaram uma escassa representatividade na Câmara.

Mas, afinal de contas, tudo isso não é uma questão de religião. É uma questão de formação — em particular, a formação de base. E as próprias igrejas já demonstraram isso. Por bem e por mal.

Por bem: as comunidades eclesiásticas de base alimentaram a orientação esquerdista nas igrejas que bebiam do poço ideológico da Teologia da Libertação. Essas igrejas se tornaram a base eclesiástica sobre a qual a superestrutura política das vitórias eleitorais do PT foram construídas.

Por mal: ao longo de várias crises do neoliberalismo, desde o final do século XX até hoje, evangélicos na direita deram as mãos aos católicos conservadores num novo fascismo ecumênico. A liderança daqueles evangélicos tem uma formação importada dos Estados Unidos, o centro do neoliberalismo global e a fonte do evangelicalismo regressista que o acompanhava na década dos 80.

De fato, a década dos anos 80 culminou numa perfeita tempestade de retrocesso.

A grande estiagem na década dos 80 provocou mais uma grande onda da migração de nordestinos ao sul do país, sem a expansão industrial, com o crescimento concomitante do poder sindicalista, que tinha absorvido trabalhadores nas décadas de 60 e 70. Gilberto Gil, com eloquência característica, tem um zé-ninguém destes migrantes sertanejos a dizer de si próprio no ‘Lamento do Sertão’:

Por ser de lá

Do sertão, lá do cerrado

Lá do interior do mato

Da caatinga do roçado.

Eu quase não saio

Eu quase não tenho amigos

Eu quase que não consigo

Ficar na cidade sem viver contrariado.

Eu quase não falo

Eu quase não sei de nada

Sou como rês desgarrada

Nessa multidão boiada caminhando a esmo.

Essa "multidão boiada’” foi composta esmagadoramente de descendentes de escravos nordestinos. Esse parvenue proletário chegou sem organização sindicalista, disposto a defender os seus direitos. Há trabalhadores e trabalhadores: obreiros conseguiram reconhecimento constitucional dos seus direitos em 1930; as empregadas domésticas, apenas em 2015. Para a trabalhadora negra, a vitória sindicalista chegou bem tarde. Até hoje, a vitória da política progressista ainda não chegou.

Da mesma forma, os migrantes negros não tiveram apoio eclesiástico para se organizarem e defender os seus interesses. Poucos padres na vanguarda da Teologia da Libertação eram negros, e nenhum, claro, era mulher. E então em 1984, a Congregação para a Doutrina da Fé da Igreja Católica, deu um golpe fatal à Teologia da Libertação quando o Vaticano começou a exilar, perseguir, expurgar e silenciar os seus teólogos da Libertação nos anos 80. A Igreja Católica deixaria de fornecer "intelectuais orgânicos”’ da sua liderança sacerdotal proclamando uma opção pelos pobres pretos.

O evangelicalismo, historicamente uma religião do proletário urbano, virou uma religião empresarial das favelas. E no final do século XX, o Pentecostalismo faria para os migrantes de descendência africana no Brasil o que tinha feito no início do século XX para os migrantes de descendência africana nos Estados Unidos. Na virada do século XX, em seu famoso ensaio "A Fé dos Pais”, o grande sociólogo e militante negro estadunidense W. E. B. Du Bois distinguiu três elementos persistentes do culto cristão afroamericano tradicional: o Pregador, a Música e o Frenesi. “O Pregador” incita os fiéis ao fervor por meio da exposição entusiástica da Bíblia. "A Música", canções sincopadas e cinéticas, às vezes tristes, às vezes jubilosas, expressões de desespero e esperança.

No mesmo momento em que Du Bois escreveu essas palavras, aquela fé evangélica se manifestava nas cidades do norte, trazida por migrantes negros do sul. O Pentecostalismo nasceu e se tornou um fenômeno global. Essa mutação efervescente do evangelicalismo oferecia aos negros estadunidenses o que ofereceria aos negros brasileiros: uma religião "negra" que não se reconhecia como tal, nem mesmo por seus próprios adeptos. Essa religião negra podia ser tão apreciada da mesma forma como a faxina negra das domésticas, a cozinha negra da farofa, fubá e moqueca, e também a língua negra que fala de "bunda’"e de "bafafá, de "cachimbo” e de “cafuné”, de ‘muvuca’ e de "muquifo” — coisas aproveitadas apesar da sua origem menosprezada.

Pois assim é a maldição que vivenciam os descendentes de escravos em todo o Novo Mundo: sua obra é elogiada, sua pessoa, menosprezada. Lembra-se da cena do filme O Auto da Compadecida por Ariano Suassuna, em que o pobre João Grilo está no céu perante o tribunal de Cristo, só para descobrir, para sua franca incredulidade, que Jesus é negro. No final do filme, o João Grilo, com seu amigo Chico e a noiva dele Rosinha, encontram o mesmo Cristo preto, que lhes aparece como mendigo. Rosinha partilha seu pão com o mendigo negro, explicando já depois, “Jesus às vezes se disfarça de mendigo pra testar a bondade dos homens”. "Pode até acontecer”, diz João Grilo, " mas aquele ali não era não". Chico contesta, “Ôxe, como é que você sabe?” Reponde João Grilo, " Jesus? Pretinho daquele jeito? Kkkkkk”.

A personagem bufonesca de João Grilo ainda não consegue acreditar que Jesus pode aparecer na forma do Cristo preto que tinha lhe concedido clemência. Claro, Suassuna não era nem teólogo da Libertação nem militante do Poder Negro. Mas ele sabia muito bem, como observador astuto da cultura brasileira, que o desprezo pelo povo preto é amplo e profundo.

Os migrantes do Sertão, muitos deles tão pretos como o Cristo preto do Auto da Compadecida, chegaram sem terra e sem dinheiro às metrópoles brasileiras. Mas na maior parte, os partidos da esquerda ignoraram essas massas escuras tão assiduamente nas cidades como no cerrado. Assim, também, a Congregação para a Doutrina da Fé estava banindo os mesmos padres progressistas que defendiam suas ovelhas negras, expulsando-os de uma Igreja Católica que nunca tinha prestado um apoio clerical adequado aos descendentes de escravos quando eram camponeses rurais.

Essas mesmas ovelhas deviam encontrar pastores nas igrejas empreendedoras Pentecostais e Neopentecostais que surgiram nos subúrbios e periferias das grandes cidades onde migrantes negros e seus descendentes congregavam. Essas franquias de fé se tornaram a matriz de um novo coronelismo urbano: seus pastores, os novos coronéis; os clientes desses pastores, os fiéis trocando seus dízimos pela sobrevivência.

E tudo isso se tornou manifesto precisamente nesse momento em que o neoliberalismo tem levantado perigosamente as apostas para a sobrevivência dos trabalhadores nesses caldeirões urbanos periféricos de pobreza, precariedade e violência. Sem política partidária, essa classe trabalhadora preta enfrentou o regime neoliberal ‘como rês desgarrada’. Enquanto os partidários do Planalto estavam gratificando os banqueiros e mimando os mercados, as igrejas evangélicas estavam encurralando essa "multidão boiada caminhando a esmo”.

Ironicamente, um vetor desta trajetória é a própria vitória eleitoral do PT. O partido que tinha trabalhado com a classe trabalhadora virou governo que trabalharia para ela, efetivamente abandonando a formação política de base. A política se reduziu a ganhar eleições e trocar favores: o militante foi substituído pelo marqueteiro, a política começando e terminando na urna. No entanto a política limitada à urna é o jogo preferido dos coronéis. Foi somente uma questão de tempo até eles estarem com pé na bola para fazer gol contra.

Para a classe trabalhadora, o evangelicalismo afirmava desde o princípio que apenas o próprio Deus providencia socorro, segurança e certeza — ou pelo menos a promessa delas — apenas na igreja evangélica. É nesse ambíguo refúgio da santidade, comunidade e solidariedade nas periferias, ainda podemos ouvir, no louvor e na pregação, o suspiro da criatura assediada.

Tudo isso implica uma realidade que qualquer liderança de qualquer partido ignora por sua conta e risco: a importância da formação política ao nível de base, ensinada incansavelmente nas escolas dominicais e por "intelectuais orgânicos” comprometidos com o bem-estar daqueles que sofrem com a barbárie do neoliberalismo atual.

Essa é a hora de candidatos e campanhas e cascatas de propaganda política — a hora exata para educar a base cristã não para o mal, mas para o bem. Essa é a hora por uma formação política progressista, assiduamente semeada e cultivada nas igrejas evangélicas da periferia. Ou seja, uma formação política comprometida com o bem-estar daqueles sem socorro, sem segurança e sem certeza nas favelas e aldeias esquecidas pelos partidos esquerdistas. Ou seja, uma formação política que nos ensine a não perder o coração neste mundo tão sem coração, assim como também nos ensine a encher-nos do espírito nesta época tão sem espírito.