Culpar o outro não adianta: dificuldades da esquerda com evangélicos só serão superadas se encaradas de frente

Culpar o outro não adianta: dificuldades da esquerda com evangélicos só serão superadas se encaradas de frente

Recentemente, a teóloga e pesquisadora do direito Lusmarina Campos Garcia escreveu uma carta com considerações sobre a relação entre evangélicos e o governo. No documento, Garcia critica alianças com grandes líderes pentecostais conservadores, bem como a tentativa de aproximação com pequenas igrejas, que seriam, em sua maioria, neopentecostais e seguidoras do que ela chama de teologia fundamentalista. Garcia, que também é pastora, propõe ainda a criação de critérios de formação como exigência para a abertura de templos, além de um comitê teológico para a revisão dos currículos das escolas de teologia do país, para garantir a "formação adequada" dos líderes religiosos.

Antes de desenvolver as discordâncias que tenho com o texto, gostaria de apontar o que concordo com ele: a necessidade da esquerda de aprofundar o diálogo com os religiosos. Isso não é pouco, já que uma parte da esquerda acredita ser possível fazer política prescindindo desse grupo. Reconhecer a importância dos evangélicos na sociedade brasileira é um importante ponto de partida para qualquer corrente política que tenha pretensões de influência na sociedade e possibilidades de sucesso eleitoral. Dada essa concordância, vamos agora aos pontos de discórdia.

Em primeiro lugar, o ponto que considero mais grave: a ideia de um órgão que funcione como controlador do ensino de teologia parece-me equivocada em todos os sentidos. No aspecto operacional, como seria feita a seleção dos burocratas competentes? Como garantir que determinadas igrejas/correntes não sejam favorecidas? Quem teria o poder para fiscalizar e dizer o que é “teologia séria” e o que é picaretagem no país? Sob quais critérios, definidos por quem?

Algumas dessas perguntas já tocam, inclusive, nos problemas do aspecto ideacional da proposta. Ela claramente viola a liberdade de crença, a liberdade religiosa e de reunião. Não cabe ao Estado determinar o que é crença religiosa legítima ou o que é “picaretagem teológica”. A laicidade do Estado é justamente sua posição de neutralidade em relação às crenças.

Já no aspecto político, parece-me que a proposta só serviria para alimentar a narrativa de que o PT gostaria de perseguir e cercear os direitos das igrejas evangélicas. Facilmente, o comitê teológico proposto por Garcia seria taxado de comitê da perseguição religiosa.

Há outros pontos na carta que também me parecem inexequíveis ou equivocados. Por exemplo, não acho que o governo tente qualquer aliança com pequenas igrejas - essa ideia me parece mais uma estratégia narrativa para não admitir que não se consegue alianças com as grandes denominações. Vejo também com ressalvas a ideia de um fórum com pequenas igrejas, pelo fato de que não creio haver forma de reunir, nem indivíduos nem instituições capazes de representar as centenas de milhares de pequenas igrejas que o país abriga.

Parece-me que, quando o assunto é a relação das igrejas com a esquerda (ou o governo, ou o campo progressista, etc.), há um aspecto difícil de tratar e admitir: existe uma dificuldade estrutural nessa relação, por conta da forma como a esquerda e as religiões se organizam, pelo menos nas últimas décadas. O campo político da esquerda, em todo o Ocidente, trouxe para sua centralidade a discussão sobre comportamento e direitos humanos. As discussões em torno das pautas raciais, de gênero, de sexualidade, de formas de relacionamento, etc., posicionaram a esquerda na vanguarda comportamental. E é justamente nos grupos em que avanços comportamentais são mais aceitos, legitimados e incentivados que a esquerda tem se saído melhor: nas universidades, na juventude de classe média, no mundo das artes, da cultura, do jornalismo e nas grandes cidades. Já os evangélicos, e as igrejas cristãs de forma geral, principalmente no Brasil, criaram sua sociabilidade de culto e seus valores basilares - não só no sentido teológico, mas também no sentido cultural - em torno da estrutura da família nuclear tradicional. Essa diferença, inclusive, constrói universos de sociabilidade distintos. Como consequência, religiosos sentem-se estranhos em meios de esquerda, e vice-versa, gerando campos de sociabilidade que não se tocam.

O cenário ganha complexidade, ainda, quando damos contornos de classe a essa configuração. Avançando nessa ótica, vemos os evangélicos mais presentes entre os mais pobres e nas regiões mais periféricas. Não é à toa que o teólogo Guilherme de Carvalho utiliza o termo proletariado cultural evangélico, que se oporia aos valores da elite cultural do país, típicos do campo político da esquerda.

Fazer esses campos conversarem não é fácil, e essa talvez seja uma das principais tarefas da esquerda no atual bloco histórico. Cumpri-la pede do campo progressista um olhar crítico sobre si mesmo, mais do que intervenções teológicas no campo adversário.

*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.


Vinicius do Valle é Doutor e mestre em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). Graduado em Ciências Sociais pela mesma Universidade (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - USP). Realiza pesquisa de campo junto a evangélicos há mais de 10 anos. É autor, entre outros trabalhos, de Entre a Religião e o Lulismo, publicado pela editora Recriar (2019). É diretor do Observatório Evangélico e professor universitário, atuando na pós-graduação no Instituto Europeu de Design (IED) e na Faculdade Santa Marcelina, ministrando disciplinas relacionadas à cultura contemporânea e a métodos qualitativos. Realiza pesquisas e consultoria sobre comportamento político e opinião pública. Está no Twitter (@valle_viniciuss).