Dallagnol expõe desconhecimento da Bíblia em fala sobre mulheres

Dallagnol expõe desconhecimento da Bíblia em fala sobre mulheres

Nesses últimos dias, depois de uma fala, no mínimo infeliz, do ex-deputado Deltan Dallagnol, ferveu nas redes a discussão sobre a liderança dos homens nos espaços religiosos. O ex-procurador da República, em entrevista no programa Roda Viva, TV Cultura, afirmou como óbvio na Bíblia a autoridade masculina nas relações de gênero. Naturalmente, em estados democráticos os direitos sociais das mulheres não deveriam ser avaliados a partir de qualquer texto sagrado das religiões. É importante, no entanto, demonstrar que Dallagnol erra não somente em confundir os limites entre Igreja e Estado, mas também revelou profundo desconhecimento bíblico e reproduziu o mote do fundamentalismo hermenêutico que nunca foi unanimidade nessa discussão.

O coordenador da força-tarefa da Lava Jato deu voz à exegese pouco acurada de Efésios 5.22-24, por vezes usado para afirmar a liderança masculina e a submissão da mulher. O problema dessa interpretação começa na delimitação do texto, que não pode iniciar no verso 22, mas no 21: “sujeitai-vos uns aos outros no temor do Senhor”. À luz da versão e sintaxe gregas, os versos devem ser lidos em unidade. Assim, a “submissão” é mútua e o verbo “hupotásso”, usada no verso 21, é  pressuposto no verso 22: “mulheres aos seus próprios maridos [sujeitai-vos] como ao Senhor…”. É importante também entender que Ef 5.21 – 6.9 trata de diversas relações (homem-mulher; pais-filhos; senhores-escravos) desenvolvendo a mesma lógica: sensibilidade e respeito partilhados.  Nessa parte, Paulo não determina lugares fixos de liderança ou valor, mas preocupa-se em tornar as relações mais humanas e dignas. Por outro lado, quando utiliza o termo “cabeça” (kephalé) (v.23), refere-se a ideia de “origem” e não autoridade ou hierarquia, lembrando Gênesis — em outro lugar, o apóstolo explica que se a “mulher provém do homem, assim também o homem provém da mulher, mas tudo vem de Deus” (1Co 11.12). Ou seja, aplicando a hermenêutica Judaica, o apóstolo defende a relação igualitária. Isso não seria nada estranho para o mesmo escritor de Gálatas 3.28: “Não há judeu nem grego, escravo nem livre, homem nem mulher; pois todos são um em Cristo Jesus”.

“Submissão” em Efésios não estabelece escalas de autoridade, mas exorta, tal qual o significado da palavra, parceria e respeito recíprocos. Olhando simplesmente esse texto, já temos um interdito bíblico e paulino conta a tentativa de colocar as mulheres sob poder ou autoridade do homem. Pelo contrário, o apóstolo dá novos horizontes, iluminado pela ética do evangelho, às relações humanas.

* Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.


Kenner Terra é doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Pastor da Igreja Batista Betânia, RJ, e Coordenador do Curso de Teologia da Universidade Celso Lisboa. Membro da Associação Brasileira de Interpretação Bíblica (ABIB) e da Rede Latino-americana de Estudos Pentecostais (RELEP). Acompanhe o Kenner no YouTube, Twitter e no Instagram.