DEZEMBRO E DEPRESSÃO: UM EXPOSED DE MIM MESMO

Desde 2006, todo mês de dezembro eu tenho de ficar em alerta máximo. Não somente eu, mas toda a minha família, a pedido meu, centra os olhos em mim a fim de amorosamente me ajudar. É um exercício de humildade, dependência e ao mesmo tempo de experimentar cuidado daqueles que de fato me amam desinteressadamente. Como nunca falei abertamente sobre isso e com os detalhes que pretendo tecer aqui, acredito que muitos podem achar que, por minha defesa e prática da espiritualidade mística e interior, eu possa estar incólume aos dissabores das emoções descontroladas. Por isso, acho que pode ser de bom proveito eu me expor a fim de que ao menos uma pessoa que leia esse texto receba um bálsamo de esperança na sua vida. Se isso ocorrer, já valerá a pena a exposição. Vamos lá!

 

Eu nunca tive problemas psicológicos na minha vida (pelo menos que eu soubesse ou que tivesse sabido por alguém). A primeira vez que eu fui em um psiquiatra foi quando eu precisei de um laudo para entrar na PRF em 2003, sendo que eu já era missionário de tempo integral desde 1990 e pastor desde 1994. Naquela época, a Igreja de Deus, denominação a que pertenço, ainda não exigia laudo psiquiátrico/psicológico para candidatos a ministros. Talvez, se eu procurasse direitinho, algum problema eu deveria ter. Mas, nem eu e nem ninguém identificou nada. Entretanto, isso mudou a partir do dia 19 de dezembro de 2006. Não somente isso, toda a minha vida.

 

Neste fatídico dia, eu perdi minha esposa, com quem era casado há 13 anos, e minha filha que faria 12 anos no dia 20/12 (no dia seguinte). Ambas morreram afogadas em uma lagoa profunda no sul de Santa Catarina quando eu estava de férias na casa da minha mãe. Nesse dia, tentei salvar as duas e não consegui. Apenas meu filho, que estava com 5 anos, foi salvo da morte que pairou sobre nossa casa naquele dia. A festa da minha filha estava toda pronta na casa da minha mãe e os presentes de natal comprados. Uma verdadeira tragédia. Mas não parou apenas por aí. A tragédia foi mais funda e mais lacerante.

 

No dia do velório, quando eu estava com uma crise de coluna pelo esforço imenso que fiz para tentar salvá-las, deitado (pois nem sentar eu conseguia), recebi mensagens feitas em redes sociais, de pastores e crentes que disseram que aquilo ocorrera pois a “mão de Deus pesou sobre mim” em virtude de minhas críticas a diversas lideranças evangélicas que eu já fazia desde 1994. No mesmo dia, eu tive um surto psicótico em que eu via as duas (minha filha e esposa) na minha frente, com olhos abertos, sentadas na minha cama. Tinha sonhos recorrentes e continuados em que os bombeiros me acusavam de eu ter sido incompetente para salvá-las. Era um horror. Junto com meu irmão mais velho, que estava preocupado comigo, procurei um psiquiatra. Ele me diagnosticou com estresse pós traumático e depressão, com alto risco de suicídio. Fui dopado com vários medicamentos que eu nunca havia colocado em minha boca. Eu não tomava remédio nem para dor de cabeça! Imagina o efeito dessas drogas em meu organismo. Logo em seguida, entreguei minha credencial de pastor, abandonei por completo o ministério pastoral, fiquei de licença da polícia e me ocupei em cuidar de mim e do meu filho de cinco anos que dependia completamente de mim. Tenho imensas lacunas na minha memória dessa fase inicial, muito em virtude dos remédios fortes usados para conter os psiquismos a que eu estava submetido.

 

Com mudanças radicais de hábitos (alimentação, exercícios e lazeres), ajuda psicológica e psiquiátrica, amor da minha mãe, irmãos e parentes próximos, do meu querido bispo (a quem devo minha vida) e sobretudo práticas de disciplinas espirituais, eu fui me equalizando, acertando minhas emoções e sendo, aos poucos, liberado pelo médico dos remédios pesados. Fui retornar ao ministério pastoral 5 anos depois, quando assumi uma igreja em Balneário Camboriú, norte de Santa Catarina. Eu e meu filho já tínhamos uma rotina muito boa juntos, onde eu fazia questão de preparar todas as refeições em casa, lavar as roupas, cuidar da casa e deixar sempre um ambiente aconchegante para nós. Mas, nem tudo são flores…

 

O ser humano tem a tendência de, tão logo perceba que venceu algo, sentir-se meio que poderoso. Eu sabia que o mês de dezembro era delicado para mim. Naqueles anos de muito tratamento, sempre que chegava dezembro, os remédios e a terapia tinham de ser intensificados. Em um desses dezembros terríveis, eu fiquei sozinho em casa. Meu filho foi para o nordeste com a minha mãe, a fim de curtir férias e eu não podia ir pois tinha meus plantões a cumprir na PRF, que nessa época não permite férias. Permiti-me abrir a caixa de fotografias (não fazia isso com meu filho ainda) pois queria rever as fotos da minha esposa e filha. Comecei a ter crises de choro em casa e entrei em uma tendência de ver coisas que mais ainda me entristeciam: músicas, filmes, livros. Minhas mensagens na igreja naquele período se concentravam na esperança do céu. Nunca tinha pregado tanto sobre o céu como naqueles dias. Eu pregava, chorava e os irmãos se emocionavam pois viam profundidade e verdade no que eu falava. Mas, meu choro não era obra do Espírito Santo; era, em verdade, resultado de sintomas interiores graves…

 

Eu estava com um desejo muito recorrente: queria que Jesus me levasse desse mundo. Cheguei a pedir isso a Ele em minhas orações. Faz sentido um cristão querer estar com Jesus. É algo piedoso e demonstra espiritualidade. O problema é a motivação por trás desse desejo e todo o contexto ao redor dele. Se esse desejo de estar com Jesus está unido ao desejo de não viver mais e decepar todos os planos futuros, acredite, ele é perigoso. Então, isso foi crescendo em mim. Eu e nem ninguém percebeu.

 

Em uma madrugada desses dias em que eu estava melancólico, nostálgico e sem sono, peguei minha arma funcional (todo PRF é obrigado a receber e manter consigo uma arma acautelada) e desmontei para limpar (algo que não costumo fazer sem tê-la usado para algum treinamento da polícia). Sentei no sofá, abri um pano e coloquei todas as peças ali. Enquanto limpava e me preparava para remontar, eu comecei a pensar que poderia “acelerar” essa minha ida aos céus (por favor, nada de teorizar sobre o destino dos suicidas agora). Enquanto montava a arma, lágrimas caíam de meus olhos e se misturavam às peças do armamento. Municiei, alimentei e carreguei a arma. Logo em seguida, destravei e apontei em minha direção, já com o dedo no gatilho, pronto a imprimir força para acioná-lo. No exato instante, toca meu celular. O barulho do telefone fez eu me desconcentrar e sair da indolência e até catatonismo a que eu estava submetido naquele momento. Com a mão esquerda segurando a arma, peguei o telefone com a direita e vi que era um querido pastor que eu muito amava e que sempre se preocupava comigo. Atendi e ele em voz alta, como se estivesse gritando, disse: “Pastor Alexandre, estou para te ligar desde às onze da noite pois não paro de pensar em você. Achei que era tarde demais para te ligar, orei por você e fui deitar. Acordei agora ouvindo sua voz pedindo socorro e por isso te liguei para dizer ‘NÃO TE FAÇAS NENHUM MAL, POIS DEUS TE QUER VIVO E SAUDÁVEL!’”. Imediatamente, eu larguei a arma no chão, me pus de joelhos com o telefone no meu ouvido e disse o que estava acontecendo àquele dileto amigo pastor, que teve a sensibilidade de ouvir a voz de Deus e me socorrer sem saber de nada do que estava acontecendo comigo. Você que está lendo esse relato tem todo o direito de duvidar. Não te julgo. Mas, de fato, o que isso importa? Pra mim, nada. Eu que estou me expondo e não você. Estou falando daquilo que jamais falei em público. Portanto, duvide, acredite, questione, mas jamais desrespeite o relato de um homem que somente pode perder ao se expor.

 

A partir daí, fui conduzido amorosamente a reforçar meu tratamento, fechar as brechas que me levaram àquela situação horrorosa, cuidar com mais atenção da minha saúde mental e jamais, digo de novo, jamais subestimar os mecanismos que podem aumentar quaisquer problemas de saúde, principalmente da saúde mental. Com isso, fui expondo às pessoas próximas de mim os sintomas que elas deveriam perceber. Evitei ficar sozinho nos fins de ano e, tão logo conheci quem seria minha futura esposa, abri pra ela toda a situação e pedi que sinalizasse para mim, ao perceber sintomas que pudessem demonstrar agravamento da situação. Graças a Deus, depois desse fatídico dia, não houve mais nada parecido e grave em minha vida. Tive dezembros bem difíceis, mas nada se compara àquele dezembro.

 

Estamos em mais um terrível mês de dezembro e com ele a vigilância a que me obriguei desde então. Falar sobre isso neste mês tem seus riscos. Mas, foi bem pensado e conversado com minha família, pois o objetivo é ajudar você que venha a ler esse relato, essa exposição. Eu também estou aqui sofrendo e vigilante, portanto não se sinta só!

 

Durante esses tempos horríveis que estamos passando, onde o nome de Cristo, o Evangelho dEle, que é o que mais caro temos dentro de nosso coração, tem sido vituperado, muitos de nós temos perdido amigos de longa data; decepções das mais graves com gente que julgávamos serem seguidoras de Cristo, mas que acabamos descobrindo que se tornaram (ou sempre foram – nunca terei a resposta para isso) seguidoras do ódio, da maldade, do horror e da total falta de sentimento humano. Não ignorem isso. Essas coisas produzem feridas profundas na alma; dilaceram nossas esperanças e arrancam pedaços de nosso coração que dificilmente conseguiremos recuperar. Uma das consequências dessas rupturas são as doenças da alma, da psiquê humana, que exigem tratamento espiritual e sobretudo médico. Não se sintam menores, envergonhados ante o ultraje que alguns atribuem a quem busca ajuda médica. Busquem, pois somente você sabe o tamanho da sua dor. Mas, não se limite à ajuda médica. Mude seus hábitos, tenha uma vida devocional mais profunda, fuja das amizades tóxicas, inclusive (e principalmente) na igreja e sobretudo, exponha às pessoas mais próximas o que pode ativar uma piora em sua vida emocional e os sinais de agravamento a fim de que essas pessoas possam te ajudar. Creia que Jesus, o supremo Pastor, está na arquibancada da vida torcendo por você e ao mesmo tempo te amparando, te ajudando e guiando sua alma aos pastos verdejantes e às águas tranquilas. Que Deus abençoe a todos que suportaram ler esse texto escrito por esse combalido pastor.

*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.


Alexandre Gonçalves é pastor da Igreja de Deus  e colunista do The Intercept Brasil, é um dos líderes do grupo Cristãos Trabalhistas, ligado ao PDT. Foi ordenado desde 1994, tendo sido antes missionário atuando em Cuba com implantação de grupos caseiros e em comunidades carentes do Rio de Janeiro. Bacharel em teologia e direito e licenciado em letras, mas sua paixão é a teologia prática. Especializado em implantação de igrejas pelo SEMISUD em Quito, aprendeu os princípios do que chama de “teologia do pobre”. Além de pastor, é servidor público e diretor parlamentar do Sindicato dos Policiais e Servidores da Polícia Rodoviária Federal em Santa Catarina (SINPRF-SC). Siga-o pelo site Teologia do Pobre, pelo TwitterYouTube e/ou pelo Instagram.