Dia da Mulher: as feministas cristãs continuam a ser atacadas

Dia da Mulher: as feministas cristãs continuam a ser atacadas

Ser feminista cristã no Brasil não é uma tarefa fácil. Uma semana após a comemoração do Dia Internacional da Mulher, em conversa com as companheiras de jornada do coletivo Mulheres EIG – Evangélicas pela Igualdade de Gênero, deu para ter uma ideia do tamanho da encrenca. Eu não sou evangélica, fui criada no catolicismo, mas hoje engrosso a fila dos que se consideram “desigrejados”. Mesmo assim, o coletivo me acolheu e pude conhecer de perto os desafios de evangélicas espalhadas pelo país que enfrentam essa batalha, muitas vezes dentro de suas próprias congregações.

É claro que o conservadorismo não é privilégio dos espaços evangélicos. É possível encontrá-lo em igrejas católicas e em religiões não cristãs. Assim como há oásis progressistas dentro de todas essas denominações. Mas é fato que a sociedade brasileira é e sempre foi conservadora a despeito de um ou outro avanço. Porém, esse pequeno progresso corre risco todos os dias de ser freado. E os ideais conservadores que se vê nos espaços religiosos acabam se espalhando pela sociedade. As mulheres que ousam questioná-los acabam sendo atacadas duramente, principalmente se forem evangélicas.

Como exemplo, cito a postagem do jornal O Tempo, de Minas Gerais, em suas redes sociais sobre a manifestação em comemoração ao 8 de março. “PROTESTO PACÍFICO - Com o lema "Parem de nos matar", centenas de mulheres marcharam, nesta sexta-feira (8), pelas ruas do hipercentro de Belo Horizonte, data em que é celebrado o Dia Internacional da Mulher”. Até aí, nada demais. Mas, uma foto em que três mulheres seguravam uma faixa com os dizeres “Mulheres Evangélicas contra a onda conservadora e fascista”, foi a deixa para que quase todos os comentários da postagem fossem agressivos.

Mesmo que a manifestação incluísse mulheres de outras denominações religiosas ou de nenhuma, foram as evangélicas agredidas pelos mais diversos comentários. Entre os mais amenos, um que dizia que “Mulheres evangélicas contra o conservadorismo... mulher de Deus tem que ser conservadora!”. Os outros as relacionavam ao “extermínio de fetos no ventre” ou ainda frases impublicáveis. E muitos dos comentários desse tipo vieram de perfis de mulheres. Sororidade não é algo que se vê por aí.

A chave conservadora da “manutenção da família” é algo sempre presente no discurso de ataque. Qualquer fala sobre inclusão, aborto legal ou união homoafetiva, temas que são caros ao feminismo, é prontamente enxovalhada. A “família tradicional” é o alicerce da sociedade e deve ser protegida a qualquer custo. Basta ver a decisão tomada pelo STJ (Superior Tribunal de Justiça) que, no último dia 12, rejeitou o crime de estupro de vulnerável no caso de um homem de 20 anos que engravidou uma menina de 12 anos. O ministro Reynaldo Soares da Fonseca, relator do processo, sugeriu que o acusado “não saberia que é crime manter relação sexual com menor de 14 anos”.

Que tipo de homem adulto não sabe que ter relações com uma menina de 12 é errado? Pelo visto, os ministros que votaram a favor do acusado não sabem e/ou não leram a Súmula 593 do próprio STJ que diz: o “crime de estupro de vulnerável se configura com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante eventual consentimento da vítima para a prática do ato, sua experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente”.

O conceito de família falou mais alto. O ministro Fonseca afirmou que havia ali uma união estável. Não levou em conta as declarações da mãe da menina de que o homem era agressivo e insistia que os dois morassem juntos mesmo contra a vontade da menor. “Isso não é uma família a ser protegida. É uma situação que, para se safar de uma rígida aplicação da pena, finge um amor que nunca existiu”, disse a única ministra do STJ, Daniela Teixeira. Somente um ministro, Messod Azulay, seguiu o voto da colega. Ele acrescentou: “não se pode flexibilizar e dizer que isso é uma família”. Foram votos vencidos.

As situações que fogem do tradicional dentro das congregações, principalmente as que envolvem mulheres que não se enquadram no padrão de submissão feminina, viram alvo de fúria. A professora e gestora educacional Flávia Andréa Rodrigues, de Mulheres EIG Minas Gerais, diz que é extremamente julgada por ser uma ativista negra, evangélica, feminista e divorciada. “Já me disseram que eu não era evangélica ou que eu não era uma cristã de verdade”.

Flávia conta que já foi atacada por um homem dentro de uma igreja batista enquanto participava de um debate representando o Movimento Negro Evangélico de Minas Gerais. “No momento que fui falar de racismo, um dos membros da igreja que estava na plenária se levantou, me ameaçou e se dirigiu a mim com ofensas. O pastor teve que intervir e encerrar o debate. Então, de uma maneira geral, o espaço da igreja evangélica está contaminado por muitas convicções equivocadas do que é a fé cristã”.

A professora acrescenta que não tem ilusão de se sentir pertencente a uma igreja evangélica tradicional. “Acho importante marcar essa questão da raça porque, por si só, é muito provocador. Por eu ser uma mulher negra, periférica e ativista, quando transito nos espaços com visão mais conservadora, a regra é o desrespeito e a rejeição. E muitas vezes percebo isso nas próprias mulheres que me dizem que não é assim que uma mulher fala ou se porta”. Flávia diz que hoje se sente acolhida na comunidade Êxodo, formada a partir de “desigrejados”. “Mas é uma bolha”.

O próprio conceito do que é feminino é disputado dentro dos espaços religiosos e conservadores. Em geral acata-se, ao pé da letra, o que está escrito em Gênesis 1:27 – E criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou. A aceitação apenas do conceito binário de gênero faz o Brasil ser líder na triste estatística mundial de país que mais mata transexuais e travestis.

Ser mulher trans e líder religiosa não livrou Alexya Salvador dos ataques. Ao contrário: já precisou se proteger diante de ameaças graves de violência que incluíam sua família. Vice-presidenta de Mulheres EIG e reverenda da congregação inclusiva ICM (Igrejas da Comunidade Metropolitana), Alexya conta que é um desafio ser uma liderança cristã, preta, periférica e travesti. “Embora os avanços nos debates sobre gênero e sobre sexualidade tenham ganhado campo dentro da sociedade, é desafiador se manter nesse lugar de desconstrução”.

Para ela, os conceitos que no passado estigmatizaram e colocaram a mulher num lugar de exclusão, violência e morte continuam fortes. “Ao invés de caminhar para frente, a sociedade tem alimentado o discurso patriarcal e machista. O conservadorismo tem calado e tirado o direito das mulheres”.

Apesar das dificuldades, Alexya defende que é preciso ocupar as ruas e participar das frentes de disputas religiosas, incluindo o legislativo. “O passado e a História nos ensinaram como o machismo, o patriarcado, a transfobia, o racismo, a misoginia e o sexismo continuam ceifando nossas vidas, nos silenciando, nos calando, nos amordaçando”. A reverenda afirma que participar de um coletivo como Mulheres EIG fortalece os ânimos para a caminhada dura. “Nesse espaço, sendo uma travesti preta, eu pude encontrar um local seguro, eu encontrei sororidade. E, caminhando juntas, podemos enfrentar, cara a cara, o patriarcado e o machismo”.

*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.


Ana Trigo, jornalista, é mestra e doutora em Ciência da Religião pela PUC-SP. Pesquisadora acadêmica sobre a cracolândia desde 2013, é autora da dissertação “Quando Deus entra, a droga sai”: ação da Missão Belém e Cristolândia na recuperação da dependência química na cracolândia de São Paulo; e da tese “Mulher é muito difícil” – o (des)amparo público e religioso das dependentes químicas na cracolândia de São Paulo. Faz parte dos grupos de pesquisa do LAR (Laboratório de Antropologia da Religião – Unicamp) e do GEPP (Grupo de Estudos Protestantismo e Pentecostalismo – PUC-SP). Também integra o coletivo Mulheres EIG – Evangélicas pela Igualdade de Gênero de São Paulo.