Discussões sobre o racismo ainda são incipientes nas Igrejas

Inicialmente previsto para acontecer no dia 16 de julho, em formato presencial (em Alphaville, bairro nobre de São Paulo) e online, contando com a participação de políticos de direita e de líderes evangélicos conservadores, o evento “Minha Cor é o Brasil” foi cancelado, de acordo com os organizadores “por motivos de força maior”, mas muito provavelmente pela repercussão negativa que a iniciativa gerou. O verdadeiro motivo pode ser ilustrado apenas pela menção de alguns nomes e de algumas falas anunciadas pelos organizadores. Com o título de “Vitimismo e Racismo Negro”, estava prevista uma palestra de Sérgio Camargo, filiado ao Partido Liberal conhecido por uma série de falas que negam o racismo. Hélio Negão, outro membro do PL, apresentaria uma fala sobre a “politização da cor”. Entre os palestrantes evangélicos, o evento previa também as intervenções de outros filiados ao PL, partido pelo qual Bolsonaro disputará as eleições presidenciais deste ano. Estavam previstas a fala do cantor gospel e pastor Magno Malta anunciada com o título “vencendo os obstáculos da vida independente da cor”, e a palestra do youtuber e pastor Wesley Ross intitulada “O Brasil não é um país racista”. Outros participantes, apresentados como influenciadores, políticos e jornalistas, estavam previstos na programação do evento, todos reiterando a mesma ideia de que no Brasil não há racismo.

A esse respeito, acredito que deveríamos pensar tal evento para além de uma reunião grupal de apoiadores e simpatizantes de Bolsonaro, o que de certa forma ele também seria. Isso porque um evento nos moldes que foi anunciado promove na verdade uma pauta de desumanização, de negação do outro, de declarações que poderiam soar contra a humanidade. Quando eu digo que o Brasil é um país racista, eu considero historicamente todo o processo de colonização, de escravidão, de desumanização e de invisibilidade dos sujeitos negros, isto é, tudo aquilo que esses processos causaram para a população negra. Justamente por isso, a tentativa de se difundir na sociedade a ideia de que o Brasil, por ser um país miscigenado, não seria um país racista, como propunham fazer os participantes do referido evento, seria um modo de contribuir ainda mais com essa desumanização. Pelos títulos das falas, via-se ali um processo de mascarar o que aconteceu na história do nosso país durante séculos e, com isso, desconsiderar a participação da população majoritária do país, formada por negros, nessa história.

O debate proposto pelos organizadores do evento “Minha cor é o Brasil” é um debate que acabaria por legitimar um projeto político de institucionalização da necropolítica. Iniciativas como essa revelam que o racista sempre irá ver e ler um negro como se o negro não estivesse lá. Ou seja, dizer que o Brasil não é um país racista é desconsiderar a presença histórica dos negros em nosso passado e em nosso território. É considerar, por extensão, que o tempo e o espaço destinados à dor do homem negro e da mulher negra não existiram. Essa seria a forma mais sombria e obscura do inconsciente humano na busca de tentar ler o negro como um objeto. Contra esse crime, é preciso lembrar que o negro, a mulher negra e o homem negro são agentes, são sujeitos epistêmicos. Não dá para apagar da história do nosso país a luta da população negra pela sobrevivência, porque afinal essa é uma questão histórica.

Parece-me óbvio que campanhas negacionistas de invisibilização do outro tem a ver, antes de tudo, com o projeto político do atual governo. Todo cidadão que, vivenciando um processo de vulnerabilidade social, de exposição às violências, sejam elas físicas ou simbólicas, consegue fazer sua voz aparecer no debate público, ele passa a ser imediatamente invisibilizado pela tática negacionista bolsonarista. Essa tática é justificada por meio da tentativa de se impor a imagem de uma simetria doentia para se pensar a sociedade brasileira, doentia porque sugere que no Brasil vigoraria uma igualdade entre os sujeitos em todos os níveis, o que não é verdade. Esta seria então mais uma razão pela qual hoje é urgente se debater a questão racial nos círculos evangélicos.

Em linhas gerais, essa discussão se mostra muito difícil, sobretudo para o pentecostalismo, onde prevalece uma leitura da bíblia apoiada na ideia de que, por ser o Cristo um em todos e por todos estarem em Cristo, a questão da desigualdade racial não faria sentido num espaço em que prevaleceria a convergência espiritual coletiva, características dos cultos pentecostais, algo que de forma alguma remeteria à exclusão social.

Obviamente que isso não tira das instituições evangélicas a responsabilidade de pautar o assunto, trazendo a consciência de que a branquitude precisa ser colocada em xeque, de que é preciso engajarmos a sociedade no debate sobre desigualdade social e racial, de que há uma segregação racial que precisa ser destruída no país. Se esse espaço, que é um espaço de fé, não propor esse debate, obviamente que o racismo será uma pauta externa à religião.

Pelo que tenho observado, pontualmente, existem algumas igrejas que sim, têm debatido a questão racial de alguma forma, muito possivelmente porque elas agregam uma população majoritariamente negra, o que, diga-se de passagem, têm levado muitos estudiosos a considerarem a religião evangélica pentecostal a religião mais negra do país. Esse seria mais um motivo pelo qual a discussão racial não poderia se ausentar das igrejas.

O pentecostalismo, assim como qualquer outra expressão evangélica, não está imune aos erros e equívocos que ocorrem no interior de quaisquer instituições humanas. Falas racistas no espaço das igrejas não são raras, mas em muitos casos são baseadas numa falta de conhecimento. A falta de um engajamento por parte dos pastores na educação antirracista, por sua vez, agrava esse quadro.

Eu conheço alguns lugares e já fui chamado em alguns eventos evangélicos pentecostais para falar sobre a questão do pentecostalismo e da negritude. Nas origens do pentecostalismo está presente toda uma história de segregação, basta vermos como se deu a história do pentecostalismo nos Estados Unidos. Historicamente nós, pentecostais, temos uma ligação com todo esse processo de dor e com toda essa exclusão racial que existe lá e aqui também. Não por acaso, o enraizamento do pentecostalismo se deu sobretudo nas regiões mais pobres, alcançando sobretudo à população negra.

O debate racial é um debate urgente. Nem todo pastor tem o interesse ou a condição de propô-lo, porque para fazer seria necessário abordar com os fiéis a realidade de desigualdade racial e social e conscientizar as pessoas a respeito das classes sociais e dos conflitos protagonizados por elas. É um debate, está claro, que precisa de paciência e de tempo para poder frutificar. Pouco a pouco essa questão está sendo debatida nas igrejas, mas há muito a avançar, sobretudo quando presenciamos líderes religiosos trabalhando no sentido contrário, de se negar o racismo que historicamente existiu e ainda existe na sociedade brasileira.