E o barqueiro da morte continuará a recolher almas na cracolândia

E o barqueiro da morte continuará a recolher almas na cracolândia

O julgamento sobre a descriminalização do porte de drogas para consumo próprio que está em curso no Supremo Tribunal Federal (STF) teve início com o Recurso Extraordinário 635659 por conta da condenação de Francisco Benedito de Souza, que em julho de 2009. Ele foi flagrado portando três gramas de maconha em uma cela de um Centro de Detenção Provisória de Diadema, onde cumpria pena por assalto à mão armada, receptação e contrabando. Para se ter uma ideia do volume da droga que estava com o detento, um sachê de sal, daqueles que ficam nas mesas de restaurantes e lanchonetes, tem sete gramas. Souza foi condenado em primeira instância pelo porte da droga.

O caso chegou ao STF em 22 de fevereiro de 2011 e o ministro Teori Zavascki foi designado como relator. No entanto, apenas em 2015, já com Gilmar Mendes como relator (após a morte de Zavascki), o caso começou a ser apreciado pelos ministros, mas logo o julgamento do tema foi suspenso. Finalmente, em agosto deste ano, o caso voltou ao plenário, mas com uma mudança importante: os ministros, após análise de Alexandre de Moraes, decidiram restringir a descriminalização do uso apenas da maconha, deixando outras substâncias de lado. Uma reviravolta conservadora que continuará penalizando e desumanizando pessoas que deveriam estar sendo cuidadas, como os usuários de drogas nas cracolândias.

Essa discussão toda se dá em torno da lei 11.343/2006, também conhecida como Lei das Drogas, que teve o objetivo de modernizar a legislação anterior que igualava a penalidade do traficante à do usuário. Portanto, hoje, o usuário deveria receber penas alternativas, como trabalho comunitário, por exemplo, e o traficante responderia com pena de cinco a quinze anos de reclusão.

No entanto, sem uma definição clara sobre o que é porte ou o que é tráfico (por isso a discussão foi parar no Supremo), em geral é o agente policial quem dá o destino a quem foi flagrado portando alguma quantidade de droga. Ou até nenhuma droga. O resultado foi a explosão do número de prisões por tráfico, principalmente de pessoas negras. O viés preconceituoso de raça e classe sempre aparece. Inúmeras pesquisas apontam para isso. Em um desses levantamentos, realizado pela Agência Pública, foram analisadas mais de quatro mil sentenças por tráfico de drogas dadas em 2017 pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. Os dados mostraram que 71% das pessoas negras julgadas foram condenadas por todas as acusações feitas pelo Ministério Público no processo, num total de 2.043 réus. Entre pessoas brancas, a condenação foi menor: 67%, ou 1.097 condenados.

Outra pesquisa, feita pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), analisou mais de 41 mil processos dos tribunais de justiça estaduais que proferiram decisão no primeiro semestre de 2019. Os números mostram que 80% dos processos têm origem das prisões realizadas por policiais militares, sem investigação da Polícia Civil. Em apenas 13% dos processos há menção de envolvimento dos presos com facções criminosas. O volume médio de apreensão é de 85 gramas de maconha e 24 gramas de cocaína. Isso quando há apreensão de alguma droga: em 17% dos casos não houve apreensão de qualquer substância com os réus.

Nas ações realizadas pelas polícias nas cracolândias espalhadas pela cidade de São Paulo, os volumes de drogas apreendidos são igualmente irrisórios. Foi o caso da apreensão de 111 gramas de crack em julho e considerada bem-sucedida pela polícia. Na maioria das vezes, apenas cachimbos são encontrados com os usuários. Mesmo assim, são fichados como traficantes.

As operações policiais sempre levam nomes midiáticos, como Operação Caronte. Para quem não sabe, na mitologia grega, Caronte era o barqueiro que levava as almas para a terra dos mortos. Nada mais emblemático do que batizar com morte a operação que atinge diretamente e duramente usuários de drogas. Com o início do governo Tarcísio de Freitas (Republicanos) a operação mudou de nome: agora se chama Operação Resgate. Apesar do nome mais bonitinho, nada mudou em relação à versão anterior. As ações continuam a ser feitas apenas por policiais, sem apoio efetivo de agentes de saúde e de assistência social, que são os profissionais adequados para lidar com dependentes químicos.

Com ações focadas mais na repressão do que na assistência social ou na saúde pública levou o Brasil a ser considerado o país com a pior política de combate às drogas no pelo Global Drug Policy Index, em 2021. A instituição avaliou 30 países. A pontuação segue critérios como existência ou não de pena de morte, descriminalização e financiamento de políticas públicas, como a redução de danos. Os países que focaram na punição ou repressão receberam uma pontuação mais baixa. Foi o caso do Brasil, que recebeu nota 26, ficando atrás de países como a Uganda, que tem um dos menores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) do mundo. Em primeiro lugar ficou a Noruega, com 74 pontos.

A discussão no Supremo, que se encaminhava para uma solução mais humanizada para usuários em situação de rua, volta seus olhos agora para a maconha, uma droga considerada mais elitizada. Essa decisão conservadora apenas legitima a caracterização de dependentes químicos como como não-pessoas e criminosos. E a Operação Resgate manterá Caronte recolhendo as almas da cracolândia de São Paulo.

*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.


Ana Trigo, jornalista, é mestra e doutora em Ciência da Religião pela PUC-SP. Pesquisadora acadêmica da cracolândia desde 2013, é autora da dissertação “Quando Deus entra, a droga sai”: ação da Missão Belém e Cristolândia na recuperação da dependência química na cracolândia de São Paulo; e da tese “Mulher é muito difícil” – o (des)amparo público e religioso das dependentes químicas na cracolândia de São Paulo. Faz parte dos grupos de pesquisa GREPO (Gênero, Religião e Política) e do GEPP (Grupo de Estudos Protestantismo e Pentecostalismo). Também integra o coletivo Mulheres EIG – Evangélicas pela Igualdade de Gênero de São Paulo.