É preciso complexificar o olhar sobre as Comunidades Terapêuticas

No campo dos estudos sobre drogas existem alguns discursos que são potencializados. Nos argumentos pró-proibição – proibicionistas - há a hegemonia do malefício das drogas, que devem ser evitadas ao ponto da abstinência do corpo. Já no campo das políticas públicas de dever laico, vemos uma forte crítica à entrada da religião como base do tratamento. No que se refere a esse ponto, a matéria veiculada no domingo (19) pelo Fantástico (Rede Globo) deu empenho de tempo para a denúncia de atos ilícitos ocorridos nas Comunidades Terapêuticas (CTs). Levantaram assuntos urgentes para o debate das políticas de drogas, como o descaso com a ciência, a cura somente pela fé, o desrespeito à orientação sexual, a existência de redes substitutivas da saúde mental e a visão moral da dependência química. No entanto, há necessidade de complexificar nosso olhar, já que não devemos esperar que a reportagem esgote o tema.

As CTs recebem grande parte dos usuários de drogas e população de rua seja pela sua presença histórica, já que eram as referências de recepção antes da entrada dos marcos políticos e legais dos equipamentos da Saúde Mental, como os Centros de Atenção Psicossocial para Álcool e Drogas - CAPS-AD. Seja também pela busca na crença religiosa como auxiliadora no processo, assim como a atual pouca presença quantitativa de CAPS e Unidades de Acolhimento (UAs) para os cuidados AD, devido a falta de investimentos de recursos públicos para a sua melhoria e expansão.

Em 1968 surgiu a primeira Comunidade Terapêutica, na cidade de Goiânia, Desafio Jovem, oriunda de um movimento evangélico, e desde esse surgimento, algumas adequações ao seu desenvolvimento e fortalecimento foram necessárias. Após a reportagem, a Confenact lançou uma nota de repúdio ao que chamou de visão parcial dos dados veiculados, pedindo espaço ao contraditório. Essa nota, comentada pelo antropólogo Juliano Spyer na Folha de SP, diz respeito também a uma postura e uma disposição de posicionamento diferencial entre as CTs.

A antropóloga Priscila Farfan apresentou em sua tese de doutorado a existência de uma disputa interinstitucional entre as CTs, em que as diferenças internas categorizam e diferenciam as que fazem um trabalho sério, em prol da ciência, e que se preparam para receber financiamento público e as que agem somente como demonstrou a matéria jornalística. A antropóloga narra como as federações diferenciam as “verdadeiras CTs” e aquelas que não seriam CTs: essas diferenças estão na lei, que se ajustam às regras, são federadas, fazem reformas internas e mudam suas práticas para se adequar às exigências do Ministério da Saúde. E aquelas que continuam em modelos que negligenciam a ciência e a legislação e que não podem nem ser chamadas de CTs, segundo as federações.

Dessa forma, não podemos dicotomizar o debate entre os serviços de saúde existentes. A composição de recursos financeiros não é tão simples de ser identificado (tendo base na saúde, assistência social e outras pastas) e pode ocasionar leituras simplistas da situação. A reportagem do Fantástico reduz o debate público e, para ampliarmos, temos de pensar em classe social, raça, desigualdades sociais e disputas de compreensões sobre drogas que envolvem posicionamento político e ocupação de postos de poder.

O que podemos avançar atualmente é que há diferentes CTs que buscam legitimidade pela heterogeneidade, e que há pessoas que dizem se beneficiar desse modelo, ainda que existem desafios em sua execução.