Em nome dos Filhos: a extrema-direita realmente se preocupa com a família?

Em nome dos Filhos: a extrema-direita realmente se preocupa com a família?

Convenhamos: a forma apaixonada com que a extrema-direita defende o ideal de família tradicional quase convence pela estética apresentada e pela retórica usada. Contudo, quando aproximamos a lupa, ou a lâmina do microscópio, o que usualmente encontramos? Exemplos maciços de famílias bem ordenadas, filhos educados, pais centrados? Conquanto seja possível encontrar famílias exemplares na extrema-direita, isso não parece ser a regra.

Alguém poderia obstar: tampouco seria a regra na esquerda! É verdade; porém a esquerda não transformou um ideal religioso de família em bandeira de campanha. É aqui que reside o problema para a extrema-direita: a hipocrisia em defender e impor um padrão para os outros que ela mesma não pratica.

Outro fator digno de nota é que a defesa normalmente se faz em nome de um chamado padrão bíblico para a família, quando no texto escriturístico encontramos os mais diferentes (e surpreendentes!) arranjos familiares. Tal aspecto confere contornos de historicidade às narrativas da literatura bíblica, simplesmente porque preserva os traços culturais da ambiência, do sitz in leben, do momento histórico no qual teriam ocorrido tais fatos.

Igualmente preocupante é a tônica apologética, punitivista e aprisionante que os chamados ministérios de família, que defendem o casamento monogâmico e a abstinência sexual até o casamento, possuem em sua abordagem. Não são raros os folhetins e palestras com temas como: 21 razões para você não se separar; Casamento Blindado: como não perder o seu casamento, etc. Ora, se o modelo defendido é da parte de Deus, por que ele seria tão ruim e penoso assim, a ponto das pessoas terem que acumular motivos para não dissolverem seus casamentos? Por que dilui os motivos em 7, 21, 49... razões, se uma só, o amor, é suficiente para manter a união? Ou ainda, na sua ausência (do amor), nem exponenciando o 7 se conseguiria manter o vínculo conjugal? O fato é que não existe blindagem, mesmo porque o amor lança fora todas as garantias de fábrica em nome do risco que é amar. Infelizmente tem gente que descobre essa verdade após muito sofrimento e silêncio.

Por fim, é notório a presença de esquisitices nos paladinos da família da extrema-direita. Desde o candidato derrotado, que tanto acredita na instituição casamento que está no seu terceiro enlace matrimonial, até deputado que causa acidentes de trânsito dirigindo embriagado, inclusive causando morte, segundo noticiou a imprensa. Passam também por aí os rompimentos matrimoniais sucedâneos aos adultérios, as insinuações para o abortamento de embriões fruto de relações extraconjugais, as férias gozadas longe do cônjuge, sem esquecer os pastores que casaram após o pai cortejar (ou seria contratar?) a esposa para seu filho se casar. Ou ainda a frequência em festas de jogadores de futebol marcadas por certa licenciosidade moral.

Não estou dizendo que tais pessoas não possam verdadeiramente amar seus filhos. Estou somente indicando que, com um histórico familiar tão complicado que usualmente acompanha a extrema-direita, não deveriam ser eles a tomarem, indistintamente, a bandeira da defesa da família, mesmo porque ao fazê-lo, eles a depreciam, tanto pelo mau exemplo, quanto pela instrumentalização de algo tão santo e importante reduzindo-a uma bandeira política.

Quem se preocupa na verdade com a família e com os filhos são aqueles que o tomam como algo tão sagrado que não permite que eles sejam instrumentalizados politicamente. Quem se preocupa com a família está mais interessado em ser um bom pai, um bom irmão, um bom filho, um bom avô, um bom neto, ou mesmo um bom tio ou bom primo (assim como uma boa mãe, uma boa avó, uma boa tia, uma boa prima, uma boa irmã, etc.). O que ameaça a família, ao fim e ao cabo, são os anti-exemplos daqueles que se dizem pró-família. Afinal, desde Jesus está posto que o que contamina o ser humano e tem poder destrutivo é o que sai do coração e não o que entra pela boca. Esta tônica vale também para a família cristã: sua maior ameaça é a disfuncionalidade que dela emerge e não a coexistência com outros modelos familiares.

Pense nisso.

*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.


Dr. Sérgio Ricardo Gonçalves Dusilek é Mestre e Doutor em Ciência da Religião (UFJF/MG); Pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Filosofia da Religião, da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF/MG); Pesquisador em Estágio de Pós-Doutorado pela UEMS (Bolsista CAPES); Pastor na Igreja Batista Marapendi (RJ/RJ); Colunista do Observatório Evangélico; Professor do Seminário Teológico Batista Carioca. Autor de Bíblia e Modernidade: A contribuição de Erich Auerbach para sua recepção e co-organizador de: Fundamentalismo Religioso Cristão: Olhares transdisciplinares; O Oásis e o Deserto: Uma reflexão sobre a História, Identidade e os Princípios Batistas; e A Noiva sob o Véu: Novos Olhares sobre a participação dos evangélicos nas eleições de 2022.