Entre batuques e louvores: a expressão afro-brasileira na música evangélica de Adhemar de Campos

Entre batuques e louvores: a expressão afro-brasileira na música evangélica de Adhemar de Campos

É quase impossível frequentar um culto evangélico no Brasil sem se deparar com uma música imortalizada por Adhemar de Campos. Nascido em 1952, este talentoso compositor e cantor paulista deu os primeiros passos em sua carreira nos anos 1980 com o grupo Comunidade da Graça, tornando-se rapidamente uma figura emblemática da música evangélica no país. Adhemar, um homem negro, destacou-se ao interpretar William Joseph Seymour, um dos pioneiros do pentecostalismo americano, no aclamado musical "Rua Azusa". Além de suas muitas realizações, é interessante notar a presença marcante de uma "imaginação percussiva" em sua obra, bem como os "intercâmbios rítmicos" que ecoam a rica herança afrodiaspórica entre Brasil, Estados Unidos, Caribe e África.

Antes, gostaria de lembrar a tese do finado maestro baiano Letieres Leite: “toda música brasileira é afrobrasileira.” Para Letieres, fundador da Orkestra Rumpilezz, toda a música brasileira, dos desenhos melódicos, passando pelos arranjos e chegando aos balanços rítmicos, teria por base de formação o imenso legado dos batuques das religiões afroameríndias geradas nos trânsitos transatlânticos da modernidade. Em outras palavras, podemos dizer que a música brasileira foi germinada por aquilo que Luiz Antônio Simas denominou de “imaginação percussiva”: uma gramática social e estética que interpreta o mundo a partir dos tambores.

Em vários momentos, a música evangélica brasileira evitou deliberadamente a
influência afropercussiva. Desde a proibição de instrumentos percussivos de origem afro-brasileira nos cultos até a rejeição total de ritmos provenientes desse universo, os raros momentos em que essa relação negativa foi desafiada merecem ser examinados e recordados.

Observamos na obra de Adhemar de Campos inúmeros canções em que ritmos e
tambores aparecem em primeiro plano. Sem pretender exaurir os exemplos, citemos alguns: no álbum “Tempo de Celebração” (1993), a famosa canção “Fonte de Água Viva” utiliza-se das células rítmicas do samba-reggae, na época em voga com a consolidação do axé baiano. Outra famosa canção, “Tributo a Yehovah”, presente no mesmo álbum, apresenta células rítmicas afrocubanas da salsa. O blues, forma afroamericana por excelência, está presente de forma explícita na faixa “Satisfaz / O Senhor é a Luz”, no álbum “Vamos Cantar” (2000). Elementos do samba aparecem mais ou menos intensivamente em canções como “Bom É Louvar” do mesmo álbum e também em “Habacuque 3:17” do álbum “Momentos de Louvor, vol. 3” (1996). Já o baião e o xaxado surgem na “Cante e Louve” do álbum “Tempo de Festa” (2002).

É importante questionar o contexto em que a obra de Adhemar de Campos se insere: durante o surgimento da indústria gospel, a crescente aceitação de ritmos brasileiros e elementos percussivos é influenciada por uma agenda tanto mercadológica quanto missiológica. Esta agenda busca unir esses elementos para penetrar em espaços e nichos de mercado ainda não explorados, visando converter pessoas e seus grupos sociais.

Explorar os momentos de imaginação percussiva na obra de Adhemar de Campos
pode nos levar a perceber que, na música evangélica, a simples adoção de elementos considerados "brasileiros" pode não ser o bastante para esclarecer a relação entre o protestantismo e a chamada brasilidade. Da mesma forma, a presença de elementos estéticos oriundos da diáspora negra pode não ser suficiente para nos fazer reconsiderar a complexa relação entre o protestantismo e a negritude.

Como um aspecto positivo, Adhemar de Campos personifica uma faceta do que Du
Bois e Paul Gilroy descreveram como "dupla consciência": um estado simultâneo de pertencimento e exclusão às lógicas ocidentais que favorecem a razão em detrimento de dinâmicas afetivas. Sua "imaginação percussiva", que incorpora uma "gramática dos tambores", contribui para a formação de uma contracultura evangélica que compartilha afinidades com a música afro-brasileira. Considerar a relação entre a brasilidade e o protestantismo a partir dessa afinidade contracultural, que desafia as lógicas de dominação e exclusão ao priorizar os afetos, o corpo e as dinâmicas de racialidade, pode ser mais proveitoso para aqueles que investigam essa questão.

*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.


Arthur Martins é graduado em Filosofia (UCB) e mestrando em Ciências Sociais (PPCIS/UERJ), onde desenvolve pesquisa sobre cultura, música popular e religião. É compositor, músico e cantor do Rio.