Entre rasgueios e aleluias: a presença da guarânia no louvor evangélico brasileiro

Entre rasgueios e aleluias: a presença da guarânia no louvor evangélico brasileiro

No ano de 1973, duas canções, entre outras, fizeram parte das trilhas sonoras de famílias brasileiras: de um lado, no chamado “mercado secular”, Gal Costa embalava as rádios com uma versão de “Índia”, clássico do cancioneiro paraguaio; do outro lado, entre os cristãos, sobretudo pentecostais, o louvor “Cem Ovelhas”, gravado por Ozeias de Paula. O que há em comum entre as duas canções é a utilização do gênero musical guarânia, criado pelo paraguaio José Asunción Flores e consolidado entre os paraguaios na década de 1930.

A guarânia chegou ao Brasil nos anos 1930, uma época em que os debates sobre música popular se faziam acompanhar pela incansável resposta à pergunta: o que é ser brasileiro? Se Gilberto Freyre despontou como o grande responsável por fornecer uma resposta provisória e adequada à pergunta, o samba carioca surgiu como importante ferramenta de consolidação daquilo que seria a brasilidade.

A guarânia, que mais tarde se tornaria um sucesso avassalador nos anos 1950, especialmente com a gravação dos clássicos "Índia" e "Meu Primeiro Amor" pela dupla paulista Cascatinha e Inhana, enfrentou uma recepção desfavorável. Primeiramente, sua adoção foi criticada por representar um estrangeirismo em contraste com a busca pela autenticidade nacional. Em segundo lugar, nos anos 1950, a guarânia se transformou em um gênero eminentemente comercial e popular, sendo rejeitada por aqueles que já mantinham uma postura crítica em relação às tendências mercadológicas da música popular no Brasil.

Lado a lado, os protestantes, sobretudo pentecostais, já testemunhavam amplo crescimento. Como relatado por Cartaxo Rolim em seu estudo “Pentecostais no Brasil” (1985), entre as décadas de 1940 e 1960, há um crescimento de mais 62% no número de protestantes no Brasil.

A guarânia possui como características básicas a ocorrência de compassos 6/8, o violão como principal instrumento de acompanhamento realizando rasgueios rítmicos, o andamento mais lento e um excessivo lirismo romântico nas letras. Incorporado ao cancioneiro evangélico com certo atraso, observa-se a presença, nas canções evangélicas que se apropriam da guarânia, uma variedade de temas que pode ser descrita como continuidade do que Antonio Gouvêa Mendonça (“O Celeste Porvir”, 1984) identifica tipologicamente como “protestantismo pietista”: ênfase na experiência individual com Jesus, interpretação literal da Bíblia e conversionismo.

Se compositores e cantores como Luiz Carvalho, já nos anos 1960, se utilizavam da guarânia para cantar louvores, o estrondoso sucesso de “Cem Ovelhas” revela um trânsito interessante entre protestantes e as culturas latinoamericanas. A música foi originalmente composta pelo pastor mexicano Juan Romero em 1969, chamava-se “Visión Pastoral” e possuía diferenças fundamentais em termos musicais: se a letra da versão brasileira buscou ser fiel à mensagem em espanhol, musicalmente há uma releitura a partir da guarânia (portanto, a transformação do compasso 4/4 para o 6/8), o que altera o padrão rítmico do violão, incorporando uma síncope paraguaia característica, além da substituição do piano pelo órgão eletrônico.

Essa interpretação não se limita a uma mera "tradução" estática, mas exemplifica o que Néstor García Canclini chama de hibridismo cultural: a fusão e combinação de práticas culturais previamente separadas. Esse hibridismo surge a partir de intercâmbios e movimentos de migração, do contato com diversas culturas e das negociações contínuas, todas caracterizadas por suas próprias dinâmicas de tensão e conflito.

A adoção generalizada da guarânia no repertório musical protestante brasileiro, especialmente no contexto pentecostal, não representa apenas a apropriação de um gênero musical, mas sim uma maneira de transportar consigo uma série de referências geográficas e temporais que remetem a diferentes lugares, como o Paraguai, as regiões rurais caipiras do Brasil e os grandes centros urbanos, assim como a diversas temporalidades e seus respectivos contextos históricos.

Cabe à historiografia debruçar-se sobre a história desses movimentos e entender suas razões, particularidades e o que eles revelam sobre o protestantismo e sobre o Brasil.

A título de exemplo, deixo aqui um link para uma playlist do YouTube com algumas utilizações da guarânia pelos evangélicos.

*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.


Arthur Martins é graduado em Filosofia (UCB) e mestrando em Ciências Sociais (PPCIS/UERJ), onde desenvolve pesquisa sobre cultura, música popular e religião. É compositor, músico e cantor do Rio.