Evangélicos consideram o governo de Lula pior que o de Bolsonaro. Não deveriam

Evangélicos consideram o governo de Lula pior que o de Bolsonaro. Não deveriam
 Ricardo Stuckert/Presidência da República

A mais recente pesquisa MDA/CNT aponta que os evangélicos continuam torcendo o nariz para o governo de Luiz Inacio Lula da Silva (PT). Para 40% deles, o governo atual é pior que o do antecessor Jair Bolsonaro (PL). Mas, não deveriam pensar assim. O noticiário está aí para mostrar que Lula, conhecido por ser um grande negociador político, tem feito inúmeros acordos com as bancadas da Bíblia, da bala e do boi em nome da governabilidade. Bancadas essas que têm interesses em comuns nas áreas educacional, ambiental, indígena, ou nas questões de gênero.

A eleição de Lula lançou o slogan “o Brasil voltou!”. Pois é... voltou para onde? A sensação que fica é que os conservadores estão se sentindo mais confortáveis que no governo Bolsonaro para aprovar suas teses. E não apenas no Congresso Nacional. O que está acontecendo não é nada bom para nós mulheres, cis ou trans.

Na minha primeira coluna do ano neste Observatório Evangélico, escrevi como a Lei do Não é Não acabou desfigurada. O que deveria ser algo que traria segurança para as mulheres em bares, restaurantes e baladas, abriu um precedente que ainda custo a entender (ok, eu também não entendo o porquê de Lula dobrar o valor do fundo eleitoral para as campanhas municipais e nem como bolsonaristas continuam reinando na Agência Brasileira de Inteligência, a Abin, entre outras coisas).

Parlamentares religiosos se apressaram, incomodados ainda com não sei o quê, e logo trabalharam para que os locais de cultos e eventos religiosos fossem excluídos da lei. Ora, o texto legal é claro: “o protocolo ‘Não é Não’ será implementado no ambiente de casas noturnas e de boates, em espetáculos musicais realizados em locais fechados e em shows, com venda de bebida alcoólica (grifo meu), para promover a proteção das mulheres e para prevenir e enfrentar o constrangimento e a violência contra elas”. A deputada federal petista Maria do Rosário, autora da lei, reclamou da repercussão negativa, mas não conseguiu explicar a concessão. Lula nem deu um pio. Eu não sabia que igreja agora vende bebida alcoólica. Acho que preciso deixar a minha condição de desigrejada rapidamente.

As mesmas bancadas agora se articulam para adiar a Conferência Nacional da Educação (Conae), convocada para debater o Plano Nacional de Educação. A pauta da Conae está centrada em analisar de forma crítica alguns pleitos caros aos conservadores, como militarização das escolas, ensino em casa (o chamado homeschooling) e o Escola Sem Partido, por exemplo. E quer dar espaço para o debate de temas como gênero (incluindo questões LGBTQIA+), religião (para além do Cristianismo) e defesa do meio ambiente no espaço escolar, assuntos que os conservadores não podem nem ouvir falar.

A interferência das bancadas da Bíblia, da bala e do boi vai se espalhando pelo país. O povo yanomami continua morrendo, militares são enaltecidos, pastores são afagados com a possível manutenção de isenções tributárias. Lula desconhece, ou se esquece, que muitos pastores e líderes religiosos trabalham de graça para suas congregações. Não recebem salário, nem ajuda de custo para o serviço que prestam para as igrejas e têm outras profissões para pagar suas contas. Nada mais longe do que o dia a dia de luxo e ostentação daqueles que estrilam tanto e que o presidente prefere atender.

A infinita boa vontade de Lula com partidos conservadores do Congresso vai dando asas para os legislativos Brasil afora aprovem bizarrices como as que intimidam as mulheres que buscam o aborto legal. Vejam o que aconteceu na Assembleia Legislativa de Goiás. Os deputados aprovaram uma lei para que “o exame de ultrassom contendo os batimentos cardíacos do nascituro seja apresentado para a mãe, assim que possível”. O governador goiano Ronaldo Caiado (União Brasil), que é médico, sancionou a lei.

Ou a lei municipal de Maceió (Alagoas), aprovada no final de 2023, obrigando a vítima de estupro que tenha engravidado a olhar imagens do feto antes de fazer o procedimento. Ou ainda o que aconteceu na cidade de São Paulo que suspendeu a realização do aborto legal no Hospital Vila Nova Cachoeirinha, alegando que o espaço precisava ser usado para “outras cirurgias”.

Além disso, uma denúncia publicada pela revista Marie Claire diz que a Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo teria solicitado prontuários das pacientes que fizeram o aborto legal no hospital entre 2020 e 2023. Os profissionais ouvidos pela revista alegam que foram obrigados a repassar as informações, que são sigilosas. E pedir essas informações sem ordem judicial é crime. A mulher que busca o aborto legal já passa pelo sofrimento de uma gestação resultante de violência, ou que pode produzir risco de morte para si ou cujo feto não sobreviverá à vida extrauterina. Mas o sadismo dos conservadores (e de quem apoia suas decisões) não se satisfaz com isso. Eles precisam violentar essas mulheres um pouco mais.

*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.


Ana Trigo, jornalista, é mestra e doutora em Ciência da Religião pela PUC-SP. Pesquisadora acadêmica sobre a cracolândia desde 2013, é autora da dissertação “Quando Deus entra, a droga sai”: ação da Missão Belém e Cristolândia na recuperação da dependência química na cracolândia de São Paulo; e da tese “Mulher é muito difícil” – o (des)amparo público e religioso das dependentes químicas na cracolândia de São Paulo. Faz parte dos grupos de pesquisa do LAR (Laboratório de Antropologia da Religião – Unicamp) e do GEPP (Grupo de Estudos Protestantismo e Pentecostalismo – PUC-SP). Também integra o coletivo Mulheres EIG – Evangélicas pela Igualdade de Gênero de São Paulo.