Evangélicos e direitos humanos
É triste ouvir evangélicos, os quais se consideram filhos do Protestantismo, satirizarem ou reproduzirem frases jocosas de desqualificação da discussão em torno dos direitos humanos. Isso representa uma grande traição à tradição judaico-cristã e à sua própria história.
A dinâmica linguístico-cultural estabelecida historicamente entre os conceitos e seus usos sociais nem sempre produz saudáveis resultados. Não me leve a mal, essa afirmação não pressupõe uma pureza da língua ou defende a imunidade diante das transformações semânticas das palavras. Contudo, há termos tão desgastados pela superficial utilização que perdem seu poder significativo.
Entre esses, arrisco dizer que “Direitos Humanos” seja um dos termos mais desgastados. Além de informações equivocadas sobre o conceito, pouco se sabe da íntima relação histórica, filosófica e teológica entre Protestantismo e a promoção dos direitos fundamentais. E compreendendo a importância do tema e a crescente presença dos evangélicos na esfera pública, não seria sensato deixar de lado a discussão sobre a participação da igreja nessa pauta.
É triste ouvir evangélicos, os quais se consideram filhos do Protestantismo, satirizarem ou reproduzirem frases jocosas de desqualificação dessas discussões. Isso representa uma grande traição à tradição judaico-cristã e à sua própria história. Não nos enganemos, a ideia de sacralidade da vida tem suas raízes mais profundas na teologia da criação, os princípios de equilíbrio das relações humanas e justiça colhem suas mais preciosas pétalas no termo hebraico “shalom” e nos discursos do profetismo do VIII século a.C em Israel, os quais foram bem representados e relidos por Jesus. Além disso, os conceito de “dignidade humana” e “sujeito de direitos” estão em íntima relação com o Protestantismo e na esteira da Modernidade.
Como reconheceu Antônio Wolkner: “não podemos deixar de reconhecer a influência do protestantismo na gênese do Capitalismo moderno, na formulação da mentalidade livre individualista, na valoração da consciência moral, na contribuição da filosofia dos direitos humanos e, fundamentalmente, no impulso para a moderna concepção de jusnaturalismo” (Cultura Política Moderna, Humanismo Renascentista e Reforma Protestante, p.21).
Desde o arminiano Hugo Grotius (1583-1645) e sua contribuição para a afirmação de valores universais (vida, dignidade etc.) para todos os seres humanos, chegando ao pentecostal Denis Mukwege (“Dr. Milagre”), ganhador do Nobel da Paz por dedicar vida e carreira às vítimas de estupro na República Democrática do Congo, a discussão por justiça e Direitos Humanos não pode ser esvaziada de sentido linguístico na mentalidade e lábios evangélicos brasileiros. Por isso, os evangélicos precisariam se tornar, por ordem histórica e princípios teológicos, os protagonistas dessa discussão.
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Kenner Terra é doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Pastor da Igreja Batista Betânia, RJ, e Coordenador do Curso de Teologia da Universidade Celso Lisboa. Membro da Associação Brasileira de Interpretação Bíblica (ABIB) e da Rede Latino-americana de Estudos Pentecostais (RELEP). Acompanhe o Kenner no YouTube, Twitter e no Instagram.