Formação de pastores pode validar violência nos lares evangélicos

Cenas de violência doméstica e familiar, que infelizmente constituem um triste quadro do cotidiano da realidade brasileira, ocorrem também nos lares das famílias evangélicas. No caso específico dessas famílias, as relações de abuso e as práticas diversas de violência física e psicológica se dão em nome da religião. Embora seja difícil precisarmos com clareza os números, até mesmo porque tais casos tendem a ser encobertos pela ação e pelo discurso religioso, pode-se afirmar que as mulheres e os filhos são as maiores vítimas dessas violências cometidas em nome fé evangélica.

Quando a mulher, por exemplo, sofre esses abusos no lar e recorre às lideranças eclesiásticas, em boa parte das vezes, ela é instruída a se calar. Ensinam-lhe que, em seu silêncio de sofredora, por meio de suas orações, a mulher estaria contribuindo para conversão do marido, ou seja, para que ele abandone seu comportamento agressivo. Para que essa conversão se efetive, a mulher teria que suportar os diversos problemas que existem no lar, incluindo as violências cometida pelos maridos.

Aos filhos, por sua vez, as igrejas exigem uma espécie de obediência irrestrita que muitas vezes leva a criança, o adolescente ou o jovem a vivenciar sofrimentos os quais acarretam transtornos como a depressão. Por parte dos agressores, o sofrimento psicológico infringido aos filhos opera feito uma cobrança para que esses sigam o caminho da religião, algo que se dá sem que a criança ou o jovem comunguem das convicções religiosas que dariam sentido a fé que se espera deles.

Para as mulheres e para as crianças, a cultura religiosa impõe um silenciamento que legitima a violência no espaço doméstico. O interesse em silenciar as vítimas, que não deixa de ser uma outra forma de exercer violência sobre elas, bem como as violências que se pretendem esconder, consistiriam, para os agressores, em ações voltadas para se resguardar o testemunho cristã. A compreensão dessa lógica torna-se mais evidente quando observamos o problema do ponto de vista daqueles que realizam e legitimam as diversas formas de violência doméstica.

A esse respeito, é preciso não subestimarmos a cultura androcêntrica no meio evangélico, algo que não se restringe ao âmbito das igrejas, mas que se inicia na formação dos próprios pastores. Se formos observar, 90% dos docentes responsáveis pelosseminários que formam os pastores, ou pelos cursos de teologia das faculdades credenciadas pelo MEC, são professores homens. Quando alguma mulher ocupa esse espaço, geralmente é para trabalhar com disciplinas complementares que não têm a ver com a teologia propriamente dita. Ou seja, quase não se permite que mulheres trabalhem a teologia que chamamos de fundamental.

Isso significa que estamos falando de uma dinâmica em que homens são formados por outros homens, instruídos a ler a bíblia e a pensar as doutrinas de suas futuras pregações de acordo com uma visão de mundo essencialmente masculina. Para além disso, boa parte das denominações históricas no Brasil não permite que pastoras mulheres sejam ordenadas e nem que mulheres ensinem na Igreja, somente que ocupem papéis nos serviços de secretaria, de limpeza e outros que não o ensino ou a pregação. O púlpito é sempre dos homens.

Nesse sentido, alimentando e acobertando a violência que se passa nos lares evangélicos, há, desde a formação dos pastores, um círculo vicioso que faz com que homens estudem e concebam a teologia para homens, para posterioremente realizarem um tipo de pregação religisa que basicamente exprimi as vontades e os desejos masculinos. Isso porque sabemos que a leitura bíblica jamais é isenta, é sempre condicionada. O que se busca destacar é que a cultura antropocêntrica é um dos elementos que condicionam essa leitura. Por isso que para as mulheres é extremamente difícil romper esse círculo, pois ele surge desde a base da instrução dos homens. Estes, desde seus primeiros anos de formação, foram instruídos a buscar hermenêuticas androcêntricas, doutrinas androcêntricas, organizações eclesiásticas androcêntricas.

Como é possível perceber, o combate à violência nos lares evangélicos dificilmente será bem-sucedido sem o enfrentamento concomitante da cultura masculina que caracteriza o espaço da formação dos pastores e da pregação nas igrejas. Um primeiro passo para enfrentarmos o problema da violência doméstica nos lares evangélicos poderia se dar no reconhecimento de que essa a cultura que fundamente a violência se ampara numa leitura bem equivocada das escrituras. Afinal, as escrituras não nos ensinam a encobrir os erros que cometemos em nossa comunidade. Pelo contrário, a própria Bíblia expõe os erros de pessoas que foram importantes na história da fé, fornecendo com isso exemplos aos homens para eles não se comportem como aquelas pessoas que erraram se comportaram. Quero dizer com isso que a Bíblia nunca nos incentivou a escondermos os problemas que acontecem em nosso meio, mas sim a enfrentarmos eles da melhor forma possível.