Igrejas evangélicas não estão imunes ao racismo estrutural

Mas a hora vem, e agora é, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade; porque o Pai procura a tais que assim o adorem. (João 4:23)

O filósofo e ativista Cornel West, na sua obra Questão de Raça, lançada no Brasil pela Companhia de Bolso, destaca logo na introdução que “para abordar com eficácia a questão racial nos Estados Unidos, precisammos começar não pelos problemas dos negros, mas pelas imperfeições da sociedade norte-americana”. Com toda a licença poética, irei parafrasear a fala do filósofo da seguinte maneira: para abordar com eficácia a questão racial no Brasil, precisamos começar não pelos problemas dos negros, mas pelas imperfeições da sociedade brasileira.

É muito comum que ao tratar sobre o racismo, nossos olhos se voltem à pessoa negra, quando deveriam se voltar ao agente da opressão, por exemplo, à branquitude. bell hooks, teórica feminista e ativista, afirma que a branquitude é o fator crucial para entendermos como, exatamente, o racismo é estrutural e estruturante. Ou seja, o racismo está enraizado em nossa sociedade assim como ele também permeia e envolve todas as dinâmicas sociais nos meios em que estamos. De forma óbvia, a igreja não seria um local livre das práticas estruturais do racismo.

Recordo-me de um episódio que foi crucial para que eu entendesse que não importa o quanto eu tente fugir dele, o racismo sempre me encontrará, pois ele sabe meu nome e o meu endereço. Passando pela transição capilar, a fim de voltar a viver com os cabelos sem as químicas alisadoras, fui ousada o suficiente para fazer o big chop, o corte de retirada de toda parte lisa. Lembro-me do exato momento em que um pastor, amigo do meu pai, me olhou, olhou para o meu cabelo e me perguntou se eu precisei cortar o cabelo com um cortador de grama. Respirei fundo, organizei meus pensamentos e falei algo para mudar o rumo da conversa. Naquele mesmo dia, me questionaram por que não revidei a ofensa ou por que não fui mais assertiva. Uma das ferramentas que o racismo produz é o modo como ficamos sem palavras ao sermos ofendidos por sermos quem somos. Naquele momento, fiquei em choque. Eu não conseguia entender como alguém que me viu crescer, que acompanhou meu desenvolvimento eclesiástico, um servo escolhido por Deus foi capaz de proferir palavras tão pesadas para uma pessoa que estava, enfim, sentindo-se livre o bastante para ser quem nasceu para ser.

O racismo, como dito acima, sabe exatamente o nosso nome e endereço. Porque nada o impede de me encontrar. Afinal, naquele dia, em 2019, o racismo me encontrou dentro do meu lugar seguro, do lugar onde eu mais me sentia amada. Ele sabe.

E justamente por sermos nós os Outros, sermos nós os Eles, cai sobre nós toda a responsabilidade de desenvolver relações sociais saudáveis, como diz Cornel West. Em episódios racistas, sempre somos nós que devemos manter a cordialidade. Somos nós os responsáveis pela manutenção da paz, evitando ofender o outro. Somos nós aqueles que precisam sorrir amarelo e mudar o rumo da conversa.

Em um país, onde um jovem negro ainda morre a cada vinte e três minutos, que se cala frente ao genocídio da população negra, uma igreja que não se sensibliza com isso, que desconsidera que mais de 50% do seu povo é negro, isto é, que há uma maioria esmagadora de negros nos ambientes religiosos, não é uma igreja que preza por uma vida plena e em abundância para seus membros.

O que chamo à luz aqui é a necessidade de uma igreja que dialogue sobre raça e que, acima de tudo, se conscientize sobre o grande pecado que é o racismo. Porque, sim, racismo é pecado. Inutilmente achamos que roubo, adultério, e outros, são os únicos pecados que devemos lutar contra, enquanto a igreja segue apática em relação à saúde espiritual, emocional e social de seus membros.

O trecho de João citado no início deste texto sempre me remete à questão da raça em nossas igrejas, porque como uma pessoa negligenciada pelo Estado e pelas instituições consegue adorar em espírito e em verdade? Como uma menina, no auge dos seus vinte anos consegue adorar em espírito e em verdade logo após escutar uma fala brutal e grotesca sobre sua aparência, aparência esta que foi desenhada por aquele que criou os céus e a terra?

Como, então, uma instituição pode ser considerada uma igreja quando seus olhos estão fechados para o sofrimento da população negra no Brasil? Como se pode adorar em espírito e em verdade quando nos tiram esse direito, dia após dia, e nada é feito para combater tão grande pecado?