Igrejas fortalecem inserção social dos mais vúlneráveis

Todo sábado, minha vizinha se arrumava e aguardava na frente de casa ansiosamente a van da igreja passar. A van demorava um pouco, pois passava em várias casas para buscar geralmente idosos e crianças e levá-los até uma igreja pequena na periferia de uma cidade do interior de São Paulo. Perguntei a ela sobre como funcionava a igreja, e ela me respondeu feliz que lá ela tinha amigos, eles cantavam, todos perguntavam sobre sua vida e conversavam, havia grupos de oração, assistência social, recolhimento de donativos e oficinas. Era visível em seu olhar e gestos a importância e o papel da igreja em sua vida, lugar este que representava uma rotina estável e confortável em meio a uma vida de inseguranças e imprevisibilidade.

Não são poucas as pessoas da camada vulnerável da sociedade que encontram em igrejas evangélicas este acolhimento e até mesmo uma certa reconstituição de famílias assoladas pela miséria, vício em drogas, desemprego, fome, entre tantos outros problemas sociais que estão cada vez mais crescentes. Essas pessoas em extremo estado de vulnerabilidade não tinham a quem recorrer, a não ser às igrejas. E quem estavam lá eram igrejas evangélicas e não os movimentos sociais. Não era uma van de movimentos sociais ou grupos de esquerda que buscava minha vizinha, uma mulher negra, mãe solteira, semianalfabeta e desempregada ansiosa para ter um mínimo convívio social e se sentir digna. Foi também através de indicações de frequentadores dessa igreja que a filha desta vizinha conseguiu um emprego e o seu filho aprendeu a tocar um instrumento. É através da igreja evangélica que muitas pessoas periféricas recuperam o senso de pertencimento.

A igreja, nesse sentido, passa a ocupar um espaço que não deveria existir. Um vazio criado pela sociedade do abandono: abandono material, existencial, estético, cultural, intelectual. Um abandono tão generalizado que faz qualquer migalha parecer uma fortuna. Abandono este que perpassa desde o senso de dignidade até a possibilidade de sonhar e ter esperança. Jessé Souza afirma em seu livro “Os batalhadores da Fé” que muitas vezes é isso o que a igreja oferece: a possibilidade de sonhar com o futuro, proporcionando assim não só perspectivas e possibilidades, mas também uma densa subjetividade, ou até mesmo uma cultura.

Para essa classe social, classe de indivíduos precarizados que se reproduz há gerações e que sofre a miséria real na vida cotidiana e diária, o que faz diferença não é um discurso intelectualizado e embasado, mas sim a contribuição diária efetiva e material. Essas denominações evangélicas atuaram exatamente como lideranças comunitárias, e se tornaram a referência de um pequeno estado de bem estar social que deveria ser promovido pelo governo, pelo Estado e pelos movimentos sociais de esquerda.

Denominações como Assembleia de Deus, Igreja Universal do Reino de Deus, Igreja Mundial do Poder de Deus, Renascer em Cristo, Internacional da Graça de Deus estão entre aquelas a respeito das quais mais ouvimos falar na mídia e lideram os espaços públicos, a política e a mídia. Inclusive são de algumas dessas igrejas os 84 deputados evangélicos que ocupam as cadeiras no Congresso. Porém, a maior parte dos pentecostais frequenta pequenas ou médias denominações, sem templos caros, sem pastores influentes e famosos, sem meios de comunicação de massa. A maior parte dos evangélicos frequenta a garagem que virou igreja na esquina da sua casa, aquela na qual o pastor atua muito mais como liderança comunitária.

É preciso evitar a perigosa generalização de que todo evangélico é parte de um projeto de fascismo dominador, e que todas as igrejas evangélicas exploram o desespero do povo em favor da criação de impérios. As pequenas igrejas compartilham entre seus frequentadores crenças, saberes, práticas, emoções, valores, modos de vida, moralidades e principalmente posição de classe semelhantes. Talvez seja exatamente este o ponto que deve ser melhor refletido pela atuação de grupos de esquerda: a identidade, os laços gerados por meio de contato pessoal e real. A igreja está cumprindo um papel de inserção social de pessoas invisibilizadas por uma sociedade patriarcal, racista, classista e de herança escravocrata. Há uma grande complexidade neste fenômeno e é necessário compreender a função social e identitária que estas igrejas cumprem.

Tal generalização é um equívoco de análise, e principalmente de tática política. O campo evangélico não é um bloco monolítico e nem uniforme, é historicamente heterogêneo, plural e diverso em suas manifestações. Além disso, é majoritariamente popular e composto por trabalhadoras e trabalhadores da favela e do campo. Por isso é muito importante analisar o campo evangélico por uma dimensão de classe: grande parte dos evangélicos é parte da classe trabalhadora que luta para sobreviver em um dos países mais desiguais do mundo. A religião oferece um horizonte de sentido onde a política se esgarçou, a utopia deu espaço para a desilusão e a miséria e a dor fazem a população buscar incessantemente por um antídoto imediato.

A igreja evangélica passou a ocupar as lacunas criadas por uma sociedade capitalista que marginaliza os indivíduos e os exclui do exercício político. O desafio da esquerda hoje é criar novas formas de sociabilidade e atuação política dentro da periferia para além da igreja, organizando-se para responder tais demandas que a igreja está suprindo, disputar as narrativas que estão colocadas e captar tal parcela da população que está tão vulnerável a ponto de se entregar para discursos extremistas e fundamentalistas.

O conservadorismo é um traço da sociedade brasileira, não é uma invenção da igreja evangélica. Está enraizado em nossa história, para além da religião. Embora o campo evangélico seja majoritariamente conservador, o conservadorismo não é exclusivo apenas desta parcela da população. Além do conservadorismo que prevalece, cabe identificar que há segmentos dentro deste plural campo evangélico que são ultra conservadores e extremistas, que possuem projeto de poder e tem influenciado políticas públicas e legislações, e que trabalham para o governo Bolsonaro. Tal extremismo é traduzido em grandes lideranças que estão na base da sustentação política e ideológica do governo, mas que não representam todos os evangélicos.

É necessário compreender que a espiritualidade evangélica faz parte da mística popular brasileira e que, portanto, dialogar  com esse segmento deveria ser algo permanente, não se restringindo apenas ao período eleitoral. Um diálogo permanente que permitisse às esquerdas expor sua preocupação pelas condições de vida da classe trabalhadora, formada em sua maioria por mulheres negras periféricas, pela população da favela que morre de tiro, que é vítima de chacina, que está em sub-emprego, na informalidade, passando fome. Um diálogo necessário de convivência e comunhão essencial para a construção de um projeto de país.

Não há possibilidade de projeto popular para o Brasil através de generalização, estigmatização e distanciamento da esquerda dessa parcela da classe trabalhadora que é representada pelos evangélicos. Generalizar é entregar de bandeja nas mão do fascismo, fundamentalismo e extremismo essa narrativa sobre o campo evangélico, que deveria ser compreendida e disputada.