Jesus protegeu as mulheres, mas parlamentares cristãos querem torná-las criminosas

Jesus protegeu as mulheres, mas parlamentares cristãos querem torná-las criminosas
Créditos: Mídia Ninja

Eu completei 54 anos na semana passada. E em pouco mais de meio século de existência não me lembro de uma situação em que a vida das mulheres e meninas brasileiras estivesse tão em risco como agora. Nem no governo de Jair Bolsonaro (PL), ostensivamente ligado à política religiosa conservadora, a misoginia esteve tão presente. E, pior, está acontecendo em pleno governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), eleito com apoio maciço das mulheres.

Na sessão da Câmara dos Deputados do último dia 12, o presidente Arthur Lira (PP-AL) pautou a discussão de requerimento de urgência para o PL 1904, aquele que equipara o aborto após 22 semanas ao crime de homicídio. Na manhã do mesmo dia, as lideranças dos partidos (todos eles, inclusive os de esquerda) decidiram que a votação seria simbólica, ou seja, quando não há contabilização dos votos e não se sabe a decisão individual de cada parlamentar. Pois bem, já na sessão, Lira rapidamente colocou o requerimento em discussão. Por três vezes chamou o pastor e deputado Henrique Vieira (PSOL-RJ) e pergunta se ele gostaria de orientar o voto da bancada dita progressista e que faz parte da base do governo. Era uma pequena oportunidade para se posicionar, de votar contra esse absurdo. Nada.

Pronto! Bastaram 23 segundos. Agora o projeto pode entrar em votação a qualquer momento e sem passar pelas comissões de praxe para ser analisado. Depois que perceberam o que aconteceu, algumas deputadas, entre elas Fernanda Melchionna (PSOL-RS), pediram a palavra, reclamaram do rito, queriam registrar o voto contrário. Meramente protocolar. O mal estava feito e os deputados conservadores, majoritariamente evangélicos, saíram em comemoração porque a “defesa da vida” estava garantida. Mas a defesa da vida de quem? Só se for a dos pedófilos e dos estupradores que, se eventualmente forem presos, pegarão em média oito anos de prisão. As meninas e mulheres cumprirão 20 anos de cadeia.

Juristas e especialistas em direito constitucional apontam para a violação de direitos humanos e para a inconstitucionalidade do projeto. Assim, o Brasil trilha o caminho para se equiparar a governos fundamentalistas que punem as mulheres que foram estupradas. Lembremos dos casos a seguir. Em 2021, a mexicana Paola Schietekat foi contratada para trabalhar na organização da Copa do Mundo, que foi realizada no Qatar em 2022. Com 27 anos, achou que tinha conseguido o emprego dos sonhos. Mas a experiência logo se tornou em um terrível pesadelo. Um homem invadiu seu apartamento, em Doha, a agrediu e a estuprou. Ela decidiu, então, denunciar o crime.

Numa reviravolta pavorosa, o tribunal criminal qatari que julgou a denúncia libertou o agressor e condenou a jovem mexicana, que é muçulmana, a sete anos de prisão e 100 chibatadas por “sexo extraconjugal”, um crime de acordo com a lei islâmica. A decisão ocorreu porque o homem alegou que mantinha um relacionamento com Paola e sua palavra teve mais valor que a dela. Felizmente, a jovem conseguiu ser liberada sob fiança e deixar o Qatar. Mas a ação contra ela continuou correndo.

Em 2022, Maryam Alsyed Tiyrab, uma sudanesa que tinha 20 anos à época, foi condenada à morte por apedrejamento, acusada de adultério. Não teve chance de defesa e nem soube exatamente os detalhes da acusação. O homem que estaria com ela, fugiu. A pena só foi revogada depois de muita ação de ativistas estrangeiros. Mesmo que países fundamentalistas refutem que ainda exista esse tipo de pena, por serem tribais em alguns casos, a condenação ainda permanece. Inclusive para mulheres estupradas que sobrevivem ao ataque. Porque não morreram da violência sexual, são consideradas adúlteras e ainda condenadas à morte por apedrejamento.

A tramitação do PL 1904, com razão chamado por ativistas feministas e de direitos humanos de PL do estuprador ou PL da gravidez infantil, apenas demonstra a violência a que estamos sujeitas nas mãos de um Congresso que não se importa com a vida das mulheres, principalmente das meninas. A forma omissa como o governo Lula tratou do assunto é uma facada nas costas do eleitorado feminino que ajudou a elegê-lo. A manutenção ao direito ao aborto legal é tratada pelo Planalto como uma “pauta de costumes” e não como de saúde pública ou de segurança, já que envolve o crime de estupro. O líder do governo, deputado José Guimarães (PT-CE), sem qualquer constrangimento, disse que “isso não é assunto do governo”.

Não deve ser mesmo. Nem um pio de Lula, ou da ministra da Saúde, Nísia Trindade, ou do ministro dos Direitos Humanos, Silvio de Almeida. Apenas a primeira-dama, Janja Lula da Silva, e a ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, postaram comentários sobre o PL 1904 depois de muita reclamação sobre o silêncio delas. Manifestações importantes, porém, insuficientes. Uma fala mais coerente veio do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), quando afirmou que um projeto de lei tão sensível jamais seria colocado em votação em regime de urgência, não sem antes discutir com a sociedade e ouvir, inclusive, as senadoras.

Ativistas, defensoras e defensores de meninas e mulheres inundaram as redes sociais e saíram às ruas contra a brutalidade do PL 1904. Acho importante destacar o trabalho incansável e muitas vezes inglório de feministas cristãs para a manutenção de nossos direitos mais básicos, dentro e fora de suas congregações e igrejas, muitas vezes confrontando as lideranças masculinas. É o caso de Evangélicas pela Igualdade de Gênero que acolheu esta católica desigrejada. Em colaboração com outros coletivos, cristãos ou não, desenvolveram uma profusa campanha nas redes sociais e também foram para as ruas.

Parece ter surtido algum resultado. Lira agora modula o discurso e diz que o PL 1904 pode sofrer ajustes, que chamará uma mulher para a relatoria, do Centrão, claro. Mas já corre pelos corredores da Câmara que, depois da repercussão negativa, o projeto poderá ser colocado na geladeira para aguardar o fim das eleições municipais e as negociações para a escolha do próximo presidente da Câmara dos Deputados. É um respiro, mas ainda não dá para comemorar.

Temos vistos relatos sobre as dificuldades enfrentadas por meninas e mulheres vítimas de estupro e que buscam o aborto legal na rede pública credenciada. Se o projeto for aprovado, os obstáculos tendem a ser cada vez maiores. As negativas virão para empurrar a gestação para além das 22 semanas. Que profissional realizará a interrupção da gravidez diante da possibilidade de também ser condenado a 20 anos de reclusão? As vítimas que tiverem dinheiro poderão pagar pelo procedimento e pelo silêncio médico. Quem não tiver, vai para a cadeia.

Deputadas e deputados federais ditos progressistas e que formam a base do governo seguem mudos ou com falas rápidas e ligeiramente constrangidas. Todos com receio de novas derrotas no Congresso no embate com parlamentares da Bancada da Bíblia. Ou mesmo querendo evitar mais polêmica de olho nas eleições municipais que se avizinham. Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2023) mais de 60% das vítimas de estupro têm até 13 anos. E a cada dez crianças abusadas, seis foram violentadas por seus próprios familiares. Para que se meter nisso, não é mesmo? É mais fácil é deixar a vítima ser culpada e evitar o embate com os colegas conservadores, mesmo que eles sigam trabalhando para legalizar a tortura de meninas e mulheres que foram estupradas.

Jesus sempre protegeu as mulheres. Esta passagem bíblica é emblemática: escribas e fariseus acusam uma mulher de adultério. Diante dos questionamentos de Jesus, desaparecem. "Mulher, onde estão aqueles teus acusadores? Ninguém te condenou? E ela disse: Ninguém, Senhor. E disse-lhe Jesus: Nem eu também te condeno" (João 8:10-11). Infelizmente, parlamentares que se dizem cristãos, não compreenderam os ensinamentos do Cristo. Criminalizar meninas e mulheres vítimas de estupro não é apenas perverso. É pecado.

*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.


Ana Trigo, jornalista, é mestra e doutora em Ciência da Religião pela PUC-SP. Pesquisadora acadêmica sobre a cracolândia desde 2013, é autora da dissertação “Quando Deus entra, a droga sai”: ação da Missão Belém e Cristolândia na recuperação da dependência química na cracolândia de São Paulo; e da tese “Mulher é muito difícil” – o (des)amparo público e religioso das dependentes químicas na cracolândia de São Paulo. Faz parte dos grupos de pesquisa do LAR (Laboratório de Antropologia da Religião – Unicamp) e do GEPP (Grupo de Estudos Protestantismo e Pentecostalismo – PUC-SP). Também integra o coletivo Mulheres EIG – Evangélicas pela Igualdade de Gênero de São Paulo.