Exemplo de Jônatas e Davi mostra que diferença de bandeiras não deveria impedir a amizade

Exemplo de Jônatas e Davi mostra que diferença de bandeiras não deveria impedir a amizade
“Assim fez Jônatas aliança com a casa de Davi.” (I Samuel 20: 16a).

É possível que uma amizade resista às diferentes bandeiras que empunhamos e sob as quais nos identificamos? Não pense, caro leitor, caríssima leitora, que esta seja uma questão de somenos importância. Em um país cindido a partir da maléfica atuação da extrema-direita nas redes sociais, urge o resgate da fraternidade outrora construída, ou pelo menos da cordialidade no tratamento que antes empunhávamos como saudação.

Ainda mais sendo este um país de maioria cristã, embora cada vez mais voltado para o Primeiro Testamento. Ao invés, diga-se de passagem, de se deter no Segundo, onde está baseada a proposição de sua fé, por vezes se torna necessário recorrer a exemplos bíblicos de personagens que estão em voga, visando cortejar as pessoas e o bom siso. Como a extrema-direita apropriou-se da figura do rei Davi para defender seu projeto teocrático de poder, nada como mergulhar no texto bíblico para salientar a diferença entre o tipo presente na Bíblia e os nomeados, ou mesmo autodeclarados antítipos da política hodierna.

Vamos ao texto?

A perícope transcrita acima fala do que seria um improvável pacto entre Jônatas, filho do rei Saul, e Davi. A esta altura, Davi já tinha sido ungido o novo rei por Samuel, enquanto Saul ocupava o trono de Israel. Davi era o rei eleito; faltava a ele a sua posse. A fama de Davi também passara a precede-lo, após a vitória sobre o gigante Golias. Até então, Davi nada mais era do que um pastor, um cuidador do rebanho de ovinos do seu pai. Após a vitória, Davi é incorporado ao exército de Israel, momento em que começa a amizade com Jônatas.

Esta proximidade com o rei que sabe que seu tempo está findando, atiçou o ciúme real, embalando a mania persecutória de Saul. O rei passa a stalkear seu mais destacado capitão, chegando a tentar lança-lo na parede. Nesse período, não foram poucas as vezes nas quais Jônatas se posicionou contra seu próprio pai, diante da injustiça e da evidente loucura que passou a habitá-lo. Enquanto Saul se esquecia dos reais inimigos e passava a perseguir seus inimigos imaginários (dentre eles o leal Davi), visando sua permanência no trono, a continuidade do seu governo, Jônatas optou por colocar a amizade acima das contingências políticas, ou até mesmo dos benefícios e regalias que a manutenção do poder poderia seguir lhe sendo oferecida.

A pequena passagem transcrita acima antecede o momento do último encontro entre os dois amigos. Após mais um desgaste com o pai, momento em que Saul cobrou a exclusividade e partidarização de Jônatas, ele sai para se encontrar com Davi. Um daqueles encontros lindos, de alma, mas que trazem consigo também a dor da despedida. Nele Davi ouviu pela última vez a voz de Jônatas, que disse:

“Vai-te em paz, porquanto nós temos pactuado ambos em nome do Senhor, dizendo: O Senhor seja entre mim e ti, entre a minha descendência e a tua descendência perpetuamente” (I Samuel 20:42).

Notou o extraordinário? Na hora da cobrança da fidelização, da partidarização, Jônatas entroniza a relação de amizade que tinha com Davi. Uma amizade que transcendia a adesão política e que alcançou outras gerações, como foi o caso do cumprimento deste pacto na vida de Mefibosete (II Samuel 9), o filho de Jônatas, neto de Saul, que ficara aleijado em um acidente.

A prova dessa legítima amizade não está só no cumprimento do pacato com a descendência. Está na forma como Davi recebe a notícia da morte de Jônatas e de Saul, seu pai (II Samuel 1:5-27): ele manda matar o mensageiro das bad news e se angustia (II Samuel 1:26) com a morte do seu grande amigo.

Entre os cristãos, até mesmo aqueles que optam por uma fé veterotestamentária, deveria haver uma preocupação no tocante a amizade. Seria de bom tom que observassem mimeticamente o exemplo entre Jônatas e Davi, que apesar das bandeiras partidárias diferentes, não deixaram que as convicções políticas arranhassem a relação que tinham. Sim, as amizades deveriam ser mais fortes e importantes do que as bandeiras que carregamos e sob as quais nos postamos.

A pergunta que fica é: quem é o seu Jônatas, ou ainda, quem é o seu Davi?

*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.


Pr. Dr. Sérgio Ricardo Gonçalves Dusilek é Mestre e Doutor em Ciência da Religião (UFJF/MG); Pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Filosofia da Religião, da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF/MG); Pesquisador em Estágio de Pós-Doutorado pela UEMS (Bolsista CAPES); Pastor na Igreja Batista Marapendi (RJ/RJ); Professor do Seminário Teológico Batista Carioca. Autor de Bíblia e Modernidade: A contribuição de Erich Auerbach para sua recepção e co-organizador de: Fundamentalismo Religioso Cristão: Olhares transdisciplinares; O Oásis e o Deserto: Uma reflexão sobre a História, Identidade e os Princípios Batistas; e A Noiva sob o Véu: Novos Olhares sobre a participação dos evangélicos nas eleições de 2022.