Jornadas de Junho de 2013: os evangélicos não voltarão para a caixa

Jornadas de Junho de 2013: os evangélicos não voltarão para a caixa

Eu fui para as ruas em junho de 2013, como tantos outros brasileiros e tantos outros evangélicos. Lembro-me de acompanhar atônito a evolução das manifestações pelo passe livre, deflagrando a enorme demonstração generalizada de insatisfação popular. Quando um amigo mencionou que movimentos partidários de esquerda, armados com suas bandeiras, começaram a ser escorraçados das passeatas, eu soube que uma movimentação tectônica estava em curso.

Nas ruas acompanhei em primeira mão a curiosa movimentação, misturando jovens e idosos, pobres e ricos, e o onipresente verdeamarelismo. Todo tipo de pauta se fazia ouvir: partidos políticos eram proibidos, mas as agendas pululavam, incluindo coletivos lgbts marchando ao lado de inúmeros grupos cristãos. Membros da nossa então pequena congregação evangélica se fizeram presentes de moto próprio, sem articulação formal, mas havia blocos inteiros de grandes igrejas, com faixas sobre Jesus, democracia e justiça social. Diante do antipartidarismo, uma despolitização foi imediatamente acusada; por outro lado, um cientista político de esquerda, hoje desafeto meu, chegou a me dizer que estava nas ruas “o verdadeiro poder constituinte”. Suspeito que ele não apreciou muito o comportamento do “poder constituinte” dos anos seguintes. O fato é que foi liberada uma enorme quantidade de energia política.

Àquela altura boa parte dos conservadores não sabia ainda o que pensar, quando não condenava o envolvimento com as jornadas. Havia não poucos jovens cristãos, de espírito ativista, admirando os Black Blocs e sonhando com alguma sorte de revolução social. Escrevi à época sobre a profunda diferença entre “A Baderna de Deus e a Baderna dos Homens”. A percepção desse elemento potencialmente revolucionário estimulou muitos pastores de espírito conservador a reprovar as jornadas de junho e aconselhar seus fiéis a não se envolver.

Essa postura me parecia míope. Fui entrevistado em julho de 2013 pela jornalista Emma Elliott Freire para a influente First Things (“Christians in Brazil: To Protest or not To Protest?), e defendi a participação. Freire comparou minhas respostas com as de um missionário de tradição reformada e politicamente mais conservador. Sob certos aspectos, concordo mais hoje com o reverendo Wieske do que à época, mas quanto ao sentido do interesse evangélico pelas jornadas, penso que alguns líderes conservadores estavam redondamente enganados: aquilo era o começo de uma reação contra a elite cultural e política nacional, caracterizada como é por seu laicismo e por seu progressismo.

É claro que isso cria um belo problema para a sociologia brasileira. A movimentação inteira tem sido classificada como um grande movimento da classe média tradicional e de “grupos privilegiados”, reacionário e antidemocrático. No entanto, o envolvimento massivo de evangélicos com a nova direita, desde as jornadas de junho e nos anos subsequentes, não se encaixa facilmente com essa tese. Se há um fato muito bem estabelecido na sociologia da religião brasileira, é o de que o movimento evangélico cresceu a partir das margens, e que nunca possuiu penetração ideológica, política ou econômica nas grandes instituições nacionais – até agora.

A ascensão do Partido dos Trabalhadores, com apoio religioso da Teologia da Libertação, representaria uma vitória das classes trabalhadoras no confronto com a elite conservadora nacional, e deveria, portanto, ter os evangélicos em sua base; mas a realidade se mostrou muito outra. Com o reforço do distanciamento histórico, confirma-se a suspeita que a primeira era petista refletia muito mais o idealismo dos setores progressistas da elite nacional do que uma genuína expressão das massas.

O fato é que uma parcela substancial da classe trabalhadora se converteu à fé evangélica pentecostal e, em menor medida, neopentecostal, mesmo enquanto elegia representantes à esquerda. Os evangélicos são mais pobres (54% são da classe C, acima do restante da população), mais mulheres, mais negros. E não é só no Brasil; como Elle Hardy escreveu para o Jacobin, o pentecostalismo está se tornando a nova religião dos pobres no mundo todo. Não faz nenhum sentido explicar a nova direita como um mero movimento de elite.

Essa conversão do trabalhador à fé evangélica e, em seguida, ao conservadorismo, se deu simultaneamente com a metamorfose do progressismo político nacional em vetor do individualismo expressivo, segundo a feliz expressão de Robert Bellah. E quando essa elite concluiu a sua recente transformação, da defesa do trabalhador para o identitarismo político importado dos EUA, a dimensão conservadora da fé evangélica ganhou um inesperado incentivo para virar o barco.

O cavalo-de-pau dos evangélicos contra essa elite progressista vinha se anunciando há tempos, e de modo independente das jornadas de 2013. Como foi muito bem observado há poucos dias por Anna Virginia Balloussier na Folha de São Paulo, líderes evangélicos conservadores organizaram “a sua própria jornada de junho” em 05 de junho de 2013, em favor da liberdade religiosa e de expressão e de uma compreensão tradicional de família. Essa grande movimentação aconteceu antes e independentemente da grande manifestação de massa, que só viria duas semanas depois. E não era a manifestação da famigerada “classe média conservadora”, mas de uma faixa transversal da população, com extensa base popular, e com agendas de natureza moral e religiosa – que certa sociologia militante teima em “interpretar” como um mero efeito superestrutural.

É inegável que a atual resistência conservadora seja, ao menos em parte, ideologicamente controlada por setores conservadores e primariamente católicos da velha elite nacional. Todos viram a explosão de Olavo de Carvalho entre evangélicos, por exemplo. O caso, no entanto, é que o velho discurso da luta de classes marxiana não explica mais o processo nacional. Os fatores ético e religioso tem claramente um papel causal distinto. A premiada tese do sociólogo Victor Augusto Silva, por exemplo, confirma que considerações ético-religiosas defletem o voto evangélico de pautas de seu interesse social, como as políticas redistributivas. E isso acontece independentemente de alegadas estratégias de uma elite burguesa.

A aliança condicional dos evangélicos com o conservadorismo católico e o encastelamento reativo da elite cultural progressista e laica parece confirmar a repetição, no Brasil, de uma nova dialética, segundo o argumento de Michael Lind em The New Class War. No caso particular do Brasil, há duas elites em conflito, uma tradicional e outra cosmopolita, cada uma com alianças condicionais com setores do proletariado nacional; mas a elite dominante é, sem dúvida nenhuma, a elite cosmopolita – o grupo progressista e laicista que é majoritário na universidade, no judiciário e no jornalismo. Para esse grupo, Lula é um insider, independentemente de seus méritos, e Bolsonaro um outsider, independentemente de seus deméritos. E contra esse grupo, além do problema geral da invisibilidade política, os evangélicos têm suas razões ético-religiosas internas.

Se o campo conservador tem elementos fascistas e de extrema-direita? Sem dúvida. Mas é um erro primário – quando não uma estratégia retórica – tratar a guerra cultural brasileira como um conflito maniqueísta. O setor evangélico é majoritariamente conservador nos costumes, mas espiritualmente independente da direita e do tradicionalismo popularizado por Olavo de Carvalho. As culturas evangélicas envolvem elementos conservadores e elementos cosmopolitas. O evangélico votou e vota na esquerda mesmo quando não se vê como progressista, e quando votou em Bolsonaro, o fez em busca de uma representatividade negada. A aliança evangélica com a elite conservadora e católica é condicional, e nada tem a ver com privilégios de classe.

Se essa leitura estiver correta, os evangélicos comporiam um setor do proletariado cultural nacional que iniciou uma ascensão social e política, mas que carece de representação articulada, e que já dizia isso aos quatro ventos em 2013. Esse proletariado está em conflito com um establishment progressista e laicista, indisposto a negociar o controle da narrativa e do destino nacional, e que se sente, de certa forma, “ilhado” diante do conservadorismo, como declarou em desespero o jornalista Octávio Guedes ao final do primeiro turno das eleições de 2022.

Evidentemente, é pura ilusão imaginar que a derrota de Bolsonaro tenha posto fim ao movimento de 2013. O Dr. Pablo Ortelado vem insistindo nesse ponto há bastante tempo. Sua entrevista na semana passada foi na cabeça do prego: "É como se ela [a revolta] tivesse sido um catalisador de uma insatisfação e uma inquietação social que parece que não acalma, não sossega mais, ninguém consegue colocar de volta na caixa.” Como os conservadores, os evangélicos não voltarão para a caixa, a não ser por uma limitação de sua liberdade de expressão nos assuntos nos quais eles divergem da elite cosmopolita.

Trata-se de um imenso desafio. Para os evangélicos, o de recuperar os recursos de sua própria tradição espiritual para uma convivência democrática e construtiva, em busca do bem comum. Para a elite cosmopolita, o de suspender o silenciamento da dissonância conservadora e admitir que seus valores e prioridades convivam com a contrariedade evangélica. Ninguém vai voltar para a caixa; nossa única alternativa é construir um novo pluralismo brasileiro.

*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.


Guilherme de Carvalho Teólogo formado pela Escola Superior de Teologia do Mackenzie, mestre em Teologia pela Faculdade Teológica Batista de São Paulo, mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo e doutorando em teologia pela Faculdade Teológica de Kampen/Utrecht. Foi professor de teologia por vários anos e trabalha hoje com divulgação e formação em teologia pública. É atualmente pastor da Igreja Esperança em Belo Horizonte, diretor de L’Abri Fellowship Brasil, presidente da Cristãos na Ciência (ABC2) e colunista da Gazeta do Povo.