Condenação de Ana Paula Valadão contém erros jurídicos e ameaça à democracia

Condenação de Ana Paula Valadão contém erros jurídicos e ameaça à democracia

No dia 24 de Abril, o Juiz Hilmar Castelo Branco Raposo Filho, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJDFT), condenou a cantora e pastora evangélica Ana Paula Valadão Bessa a pagar R$25.000,00 por danos morais coletivos contra a população LGBTI+[1].

A Ação Civil Pública (0709624-28.2021.8.07.0001) é da autoria da Aliança Nacional LGBTI, que acusou a pastora de ter proferido um “nefasto discurso discriminatório, de ódio e que incita a violência contra as pessoas que fazem parte do grupo LGBTI+, atingindo-as diretamente em sua dignidade e humanidade”. O Juiz acatou o pedido por danos morais e determinou que não se disponibilizasse mais o conteúdo polêmico.

A decisão é altamente questionável pois se baseia no entendimento do Juiz sobre o que diz a Bíblia e o que seria uma conclusão teológica correta. O perigo desse raciocínio está na pretensão do Estado (representado aqui pelo Judiciário) de arrogar para si a prerrogativa de julgar a adequação teológica do que é ensinado dentro das igrejas e entre os fiéis.

Entre os diversos dispositivos legais violados, estão aqueles que garantem a laicidade do Estado e a liberdade religiosa das pessoas, como a inviolabilidade da liberdade de consciência e crença, que inclui o livre exercício dos cultos religiosos e suas liturgias (Art. 5o, VI, da Constituição Federal de 1988) e a vedação constitucional que impede os entes federativos de “subvencionar” (subsidiar) ou “embaraçar” (complicar) o funcionamento dos cultos religiosos e igrejas (Art. 19, I, CF/88).

O embaraço aos cultos religiosos é autoevidente: basta imaginar o nível de restrição e ansiedade sofrido pelos pregadores se, toda vez que subirem ao púlpito, tiverem que manter em mente a possibilidade de serem penalizados posteriormente. Tudo isso sob a ameaça de ter que pagar milhares de reais a títulos de danos morais, dependendo da interpretação de autoridades seculares, externas e estranhas àquela tradição e instituição religiosa. Trata-se do que juristas chamam do efeito inibidor (“chilling effect”), no qual a pressão de grupos de interesse privam os cidadãos de direitos legítimos através do medo e intimidação (por ex., o medo do cancelamento, do linchamento nas redes sociais, e do ajuizamento de ações pedindo sua prisão ou valores altos a título de danos morais).

Deve-se dar especial cuidado aos direitos de fiéis de tradições como as pentecostais e neopentecostais, nas quais a revelação profética em sonhos, visões etc. (para dar apenas um exemplo) é uma legítima fonte de interpretação bíblica e orientação espiritual. É possível pensar também no Catolicismo Romano, para o qual a tradição da igreja e uma vasta “jurisprudência” interna oferecem fontes de interpretação e orientação espiritual, além do texto puro e simples da Bíblia, que um Juiz de Direito poderia eventualmente consultar e pretender julgar.

No caso da Ana Paula Valadão, a condenação tem como base um trecho de uma pregação proferida em Março de 2016, na qual a pastora associa o intercurso homossexual com a AIDS[2].

Após a reprise da pregação em Setembro de 2020, o trecho viralizou nas redes sociais e rendeu muitas ofensas à Valadão, que foi apelidada de “pastora do ódio” por alguns.

O trecho polêmico dizia: “Deus criou o homem e a mulher, e é assim que nós cremos. Qualquer outra opção sexual é uma escolha do livre arbítrio do ser humano. E qualquer escolha leva a consequências, e a Bíblia chama qualquer escolha contrária ao que Deus determinou como ideal de pecado, e o pecado tem uma consequência, que é a morte. Inclusive tudo o que é distorcido traz consequências naturalmente; nem é Deus trazendo uma praga, um juízo não. Taí a AIDS para mostrar que a união sexual entre dois homens causa enfermidade que leva à morte, contamina as mulheres, enfim, não é o ideal de Deus. Sabe qual é o sexo seguro? Que não transmite doença nenhuma? O sexo seguro se chama aliança de casamento.”

Há pontos polêmicos na pregação, sem dúvida. É polêmico falar da homossexualidade como “opção sexual”, sem deixar claro que se está discutindo a prática voluntária de intercurso, e não apenas atração afetivo-sexual (involuntária) por pessoas do mesmo sexo ou a autoidentificação como LGBT+ (identidade social e/ou política) que são coisas diferentes (já que é possível sentir atração por alguém do mesmo sexo e/ou se identificar como “gay”, “bissexual” sem ter uma vida sexual ativa, por exemplo). Mais polêmico ainda são as associações dessa “opção sexual” com a AIDS e a contaminação de mulheres pela AIDS, presumivelmente através do adultério (homossexual?) de seus maridos.

A questão é que essas controvérsias são teológicas e pastorais, dependendo da interpretação dada por Ana Paula ao texto bíblico de Romanos 1 (cujo versículo 27 diz explicitamente que a relação homossexual resulta em punição pelo pecado) e a revelação que a cantora e pastora entende ter recebido, da parte de Deus, sobre o sentido aplicado deste versículo.

O que não podem ser, jamais, é sujeitos ao crivo de um Juiz (secular!) em serviço do Estado (laico!), os quais não podem abraçar, nem rejeitar, ou interpretar qualquer dogma e orientação religiosa. Graças a Deus, os tempos da Inquisição já se foram.

Não se ignora que a sorofobia é crime, inclusive, a Lei 12.984/14 pune condutas discriminatórias em virtude da condição de portador do HIV. Igualmente, em 2019 o Supremo Tribunal Federal decidiu que a Lei 7.716/89 (Lei do Racismo) protege os LGBT+ contra a discriminação em razão de orientação sexual ou identidade de gênero.

No entanto, a fala de Valadão não discrimina pessoas portadoras do HIV e/ou que se identificam como LGBT+. Não houve qualquer incentivo à violência ou tratamento discriminatório, nem tampouco qualquer convocação para que terceiros tratassem mal tais pessoas.

O que Valadão fez foi expor uma posição doutrinária, compartilhando um juízo de valor, traçando um nexo causal (questionável, mas possível) entre determinada prática e a suposta consequência. Nexo causal este traçado no plano do transcendente, o espiritual, além do alcance ou inquirição de qualquer Juiz, como o próprio STF reconhece.

O convite implícito ao arrependimento e abandono de determinadas práticas pelos ouvintes é inerente ao ofício pastoral, direito reconhecido pelo STF desde o caso do padre Jonas Abib (RHC 134.682/BA, 2016), que chamava os católicos a abandonaram práticas sincretistas.

Assim, não é legítimo dizer que a liberdade religiosa foi usada com “o propósito subalterno de veicular práticas criminosas tendentes a fomentar e a estimular situações de intolerância e ódio público”, que é o limite colocado pelo STF à liberdade religiosa.

Aliás, a decisão do STF que aplicou a Lei do Racismo aos LGBT+ especificamente confirmou que o decidido “não alcança nem restringe ou limita o exercício da liberdade religiosa”, “assegurado [aos fieis e ministros] o direito de pregar e de divulgar, livremente, pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, o seu pensamento e de externar suas convicções de acordo com o que se contiver em seus livros e códigos sagrados, bem assim o de ensinar segundo sua orientação doutrinária e/ou teológica”.

Se Ana Paula Valadão acredita que Deus age de maneira sobrenatural, mística ou metafísica, adoecendo quem tem relações homossexuais, ela está dentro dos limites constitucionais reconhecidos pelo STF — por mais estranho e incômodo que isso possa soar àqueles que discordam.

O grande paradoxo do caso se encontra nas avaliações teológicas oferecidas igualmente pelo Juiz e pela Aliança Nacional LGBTI, que não se acanham de emitir seus próprios juízos de valor teológicos.

Em sua decisão, o Juiz autoriza Valadão afirmar que relações não heterossexuais são pecado, e que a aliança do casamento é o sexo seguro, cuja prática não transmite doença alguma. No entanto, proíbe a referência à AIDS por ser uma “uma conclusão errada”. É como se o Juiz ocupasse um papel de censor da pregação, avaliando a doutrina ensinada. O juiz conclui que não é “admissível que uma ministra religiosa no exercício de seu mister declare publicamente que a ‘união sexual entre dois homens causa uma enfermidade que leva à morte’, referindo-se especificamente à AIDS”.

Antes de dar início à ação, a Aliança Nacional LGBTI emitiu uma nota de repúdio, acusando Valadão de homofobia e sorofobia, discurso de ódio e desinformação. A nota compara ela com Adolf Hitler, declarando que seria impossível perdoá-la, mas mesmo assim pedindo perdão em seu nome. A nota conclui: “Não se deve acreditar em um Deus como este pregado pela apresentadora, que espalha preconceitos, estigmas e ódio!”.

Deve-se considerar seriamente: segundo qual critério jurídico podem o Juiz e a Aliança Nacional LGBTI pronunciarem o que são conclusões acertadas sobre Deus nas quais se deve acreditar, enquanto uma pastora sofre pena pecuniária por exercer o mesmo direito?

Manter a decisão atual esvazia por completo a liberdade religiosa e fortalece uma tendência geral nos tribunais brasileiros, onde as liberdades de expressão e religião são limitadas em nome dos sentimentos ofendidos de terceiros. No caso concreto, mesmo em se tratando de conteúdo religioso proferido por uma liderança religiosa num evento religioso, veiculado em um canal religioso visando um público religioso, o Juiz prontamente optou por penalizar a pastora.

Ainda cabe recurso da decisão. Torçamos que a decisão seja revertida e prevaleça o entendimento de que o ensino religioso, por mais desagradável, impalatável ou incorreto que seja para terceiros, ainda assim constitui regular exercício da liberdade religiosa, para além do alcance e da análise de qualquer juiz secular.


[1] Lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e travestis, interssexo e outros.
[2] Doença decorrente de infecção pelo Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV).

*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.


Joshua Fantini Blake é membro da ANAJURE, advogado em Belo Horizonte/MG e está concluindo seu Mestrado em Direito na Universidade FUMEC.

A ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE JURISTAS EVANGÉLICOS (ANAJURE) é uma entidade brasileira fundada em 2012, sendo composta por operadores do direito, integrantes do Poder Judiciário, do Ministério Público, da Defensoria Pública, da OAB, das Procuradorias Federais e Estaduais, assim como Professores e estudantes de todo o país, estando presente em 21 Estados da República Federativa Brasileira, e tem como lema a “Defesa das Liberdades Civis Fundamentais”, em especial, a Liberdade Religiosa, de Expressão e a Dignidade da Pessoa Humana. A ANAJURE também é filiada a instituições internacionais que trabalham em defesa das liberdades civis fundamentais em todo o mundo, como a Federação Interamericana de Juristas Cristãos (FIAJC) e a Religious Liberty Partnership (RLP).