Kleber Lucas nos ensina que o louvor é filho da dor

Kleber Lucas nos ensina que o louvor é filho da dor

A versão de "Deus Cuida de Mim", canção recém-vencedora do Prêmio Multishow na categoria de Música Cristã do Ano, escrita por Kleber Lucas e apresentada pelo próprio artista com a notável participação de Caetano Veloso, provocou uma dupla surpresa: para aqueles que compartilham da fé evangélica, foi inesperado ver a canção, tão essencial à história da música de adoração no Brasil, ser cantada por alguém como Caetano Veloso, que é “ateu e viu milagres”; e para aqueles que embalam sua vida cotidiana pelo tilintar dos sinos da chamada MPB, foi surpreendente ver um de seus influentes "ritualistas" interpretando a canção de alguém que provém de um contexto aparentemente tão distante, como o do pastor evangélico Kleber Lucas.

A sensação de susto dessa parceria entre a chamada música gospel e a “música brasileira” pode ser amenizada se ouvirmos atentamente a obra de Kleber Lucas à luz de seu contexto social. Kleber nasceu em São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro, no ano do tenebroso Ato Institucional nº 5 (1968). Com uma infância marcada pela fome e pelo socorro material de mães de santo e igrejas evangélicas, aos 17 anos o gonçalense converteu-se ao evangelicalismo, em 1985, ano que marca o fim da ditadura militar.

Como compositor, Kleber Lucas compôs hinos que se juntam à vasta tradição de canção popular brasileira que, em seus momentos mais luminosos, foi inventada à revelia do projeto institucional de um país violento, racista e opressor. Formas de vida como o samba, por exemplo, são marcadas por experiências subjetivas e coletivas de desrespeito e sofrimento, assim como por gestos de invenção de alegria e de festa. Se, como cantam Caetano e Gil, “o samba é filho da dor”, coube ao povo negro do Brasil demandar o reconhecimento de sua subalternidade social a partir de seus batuques e, ao mesmo tempo, fundar as condições de possibilidade de um mundo justo e feliz.

Sem deixar de lado o apelo à transcendência inerente ao louvor, Kleber inclui em suas canções aspectos das agruras do presente, como o solitário silêncio dos outros e de Deus (tema tão caro a um compositor como Paulinho da Viola) em “Tempo de Deus” e “Teu Silêncio”. Ou o sentimento de desespero característico da vida moderna que impele o ser humano à desistência como em “Fome e Sede” e “Perto de Deus”. E, claro, sem deixar de lado o afeto-esperança que move a vida rumo à invenção de novas possibilidades, como em “Vou Seguir com Fé” e “Pra Valer a Pena”.

Frente a formas triunfalistas de expressão da subjetividade nas canções evangélicas contemporâneas, articuladas em torno de justas demandas como “vitória”, “bênção” e “prosperidade”, mas sobredeterminadas pela gestão neoliberal da vida e do sofrimento, Kleber Lucas nos apresenta uma outra gramática do louvor, voltada à compreensão das experiências individuais e coletivas de dor e angústia. A partir das demandas de reconhecimento do sofrer, Kleber Lucas oferece uma gramática doxológica alternativa, em que estão presentes tanto a verticalidade da adoração a Deus como também a horizontalidade da vida humana.

Parafraseando Caetano e Gil, Kleber Lucas nos ensina que, assim como o samba, o louvor também é filho da dor.

Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.


Arthur Henrique Martins é graduado em Filosofia (UCB) e mestrando em Ciências Sociais (PPCIS/UERJ), onde desenvolve pesquisa sobre cultura, música popular e religião.