Liberdade religiosa não deveria legitimar discursos de ódio

A violência política não é recente no país. Aliás, creio que o Brasil nunca abordou este tipo de violência com a seriedade que deveria. Para começar, temos páginas de violência política mal resolvidas, que são as da ditadura militar, em que torturadores saíram impunes e as vítimas criminalizadas. Para interromper o que conseguimos construir de democracia, bastou a Comissão Nacional da Verdade instaurada em 2012 abrir os arquivos da tortura, dar nome aos e às torturadas, buscar seus restos mortais e responsabilizar os torturadores. O que a ex-presidenta Dilma viveu a partir dali foi ódio político dos mais inaceitáveis. Não houve e possivelmente não haverá reparação.

Suspeito que o assassinato de Marcelo Arruda não será o único a testemunharmos, infelizmente. Nem foi o primeiro. Precisamos lembrar de Moa do Katendê, assassinado por defender o voto em Haddad nas eleições de 2018. Estamos em um momento muito perigoso no país. Instituições que historicamente possuíam uma certa reserva moral para conclamar a sociedade para o diálogo ou para o debate sobre projetos políticos estão desacreditadas. Perdemos a coesão social. As últimas eleições para a presidência aconteceram sem debate entre os principais candidatos que disputavam o cargo. O atual presidente ganhou as eleições sem apresentar projeto político. E, será candidato outra vez, tendo por projeto político a mobilização do ódio. O assassinato de Marcelo é o resultado desta deterioração social instalada no país.

Nas igrejas não se trabalha muito o tema da violência política, aliás, pouco se discute política no sentido de como o poder se organiza e quem representa o poder. A tendência é falar de não violência de forma genérica, sem tocar em pontos que possam causar desconfortos ou aprofundar conflitos. Neste caso, estou pensando em igrejas do protestantismo histórico.

O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, em seu artigo 18, afirma que o direito à liberdade religiosa pode ser limitado por leis que têm como objetivo garantir “a segurança, a ordem, a saúde ou a moral pública ou os direitos e as liberdades das demais pessoas”. Diante disso, vídeos como aquele veiculado no último 12 pelo humorista Antônio Tabet em sua conta no twitter, deveriam ser enquadrados no discurso de ódio e na conclamação à violência. No vídeo em questão, gravado durante um culto, um pastor vestindo uma camisa que estampa a frase “não sou vacinado” aparece orando no púlpito diante dos fieis. Em sua “oração”, ele afirma que “o maldito STF” estaria “associado ao crime nacional” e pede a Deus para que aqueles “juízes comessem a ser exterminados”. Noutro momento do vídeo, o pastor reforça seu pedido e fala: “Deus, envia um vírus novo para comer a coluna desses juízes malditos do STF”. Certamente, se confrontado, ele irá argumentar que a liberdade religiosa assegura o direito de ele falar o que quiser para a sua congregação. No entanto, a liberdade religiosa, ao ser reivindicada como direito absoluto por um grupo hegemônico, converte-se facilmente em ação violenta e coercitiva. Vídeos como o deste pastor nos colocam a difícil tarefa de debater o tema da liberdade religiosa.

Por fim, a relação entre Estado, militarismo e igreja nunca é positiva. É só olhar para a história. A inquisição, por exemplo, era resultado da aliança entre império, poder militar e igreja. Não é necessário dizer que as consequências desta aliança foram terríveis. Atualizar esta tríade seria a própria falência do cristianismo.