Lições da história de Davi: Cuidado em quem você atira pedra
“E Simei, filho de Gêra, da Casa de Saul, proferia maldições e atirava pedras contra Davi e todos os seus servos, mesmo sabendo que todo o povo e todos os valentes ladeavam o rei.” (II Samuel 16: 5c-6).
A passagem bíblica acima corresponde a um momento de baixa do Rei Davi. Seu filho Absalão tanto semeou intrigas na porta do Palácio que finalmente colheu a destituição do próprio pai. Cabisbaixo, impedido emocionalmente, num primeiro momento, de responder à altura, Davi abandona o Palácio junto dos seus apoiadores, humilhado pela situação inusitada que passou a viver: o poder lhe foi tirado bem debaixo do seu nariz.
Não bastasse toda aquela humilhação, no caminho de sua “extradição”, ele ainda se depara com um desqualificado que o amaldiçoa e expõe todo seu repúdio, jogando pedras sobre a comitiva real. Infelizmente, este triste registro bíblico não é exclusivo das páginas escriturísticas. Ele não ficou confinado ao registro do livro de II Samuel. Na verdade, ainda hoje, no meio do povo de Deus, é possível encontrar muitos que são como Simei. Apedrejam gente nobre mesmo quando este ou aquela está por baixo.
O Simei contemporâneo, tal qual o do texto, é aquele que fica à espreita, esperando o momento de lançar seus impropérios e suas pedras. Torce sempre pelo time contrário. Uma vez desprovido de estatura moral e espiritual para confrontar o rei, passa a monitorar e aguardar o dia em que este digno personagem estiver em baixa para promover seu ataque. O SIMEI DOS NOSSOS DIAS não chuta pitbull vivo. Ele (ou ela) não consegue evitar de dar um chute em um “cão morto”, seja ele quem for.
Hodiernamente, os “Simeis” se apresentam como líderes, pretensos porta-vozes do mundo evangélico, como pastores e pastoras, como apologetas de uma fé que tem prazer na mortificação (em todos os sentidos possíveis) do outro, até em editores que visam propagar algum tipo de palavra, de mensagem que, ao que tudo indica, dista (em muito) do coração de Deus. São profissionais da desgraça alheia, corvos que lascam a carne dos servos de Deus; abutres que só proferem os ataques quando o corpo já cheira mal por tanta exposição.
Falta aos Simeis do nosso tempo a evangélica (no estrito sentido do termo) disposição do bom samaritano que, ao invés de dar vazão aos seus preconceitos étnico-raciais, sendo alguns deles “compreensíveis” (jamais aceitáveis ou justificáveis), e chutar aquele que estava dado como morto no Caminho, escandalosamente desfaz a lógica da ocasião, e se oferece como anteparo para o cuidado, acolhimento e retomada da vida.
Não cabe ao discípulo de Jesus chutar os cães mortos, largados pelo Caminho. Mesmo porque certa advertência do profeta Dom Helder Câmara segue muito atual. Ao sofrer uma batida da Repressão na Casa Paroquial, Dom Helder, que sempre foi um gigante moral, além de impedir a entrada, disse ao tenente que comandava o grupo: “Na roda da vida, tenente, hoje o senhor está em cima e o fulano lá embaixo; todavia, a roda da vida gira e amanhã as posições podem ser invertidas: você lá embaixo e ele lá em cima”.
A sábia colocação de Dom Helder coaduna com a melhor recomendação do sábio do Primeiro Testamento:
“Quando cair o teu inimigo, não te alegres, e quando tropeçar, não se regozije o teu coração; para que o Senhor não o veja, e isso seja mau aos seus olhos, e desvie dele a sua ira.” (Pv.24:17,18).
A querela entre Simei e Davi não terminou no capítulo 16 de II Samuel. No caso de Davi, a chamada roda da vida demorou só três capítulos para restituí-lo ao poder. Já no capitulo 19 de II Samuel, vimos Simei se humilhando e pedindo perdão ao rei (versos 16-20).
Moral da história? Cuidado, botinha ortopédica a quem chuta, especialmente se você é um “Simei” que foi criado com a vovó. A vida segue sendo uma caixinha de surpresas, com mudanças bruscas no enredo e na sorte dos seus atores.
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Pr. Dr. Sérgio Ricardo Gonçalves Dusilek é Mestre e Doutor em Ciência da Religião (UFJF/MG); Pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Filosofia da Religião, da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF/MG); Pesquisador em Estágio de Pós-Doutorado pela UEMS (Bolsista CAPES); Pastor na Igreja Batista Marapendi (RJ/RJ); Professor do Seminário Teológico Batista Carioca. Autor de Bíblia e Modernidade: A contribuição de Erich Auerbach para sua recepção e co-organizador de: Fundamentalismo Religioso Cristão: Olhares transdisciplinares; O Oásis e o Deserto: Uma reflexão sobre a História, Identidade e os Princípios Batistas; e A Noiva sob o Véu: Novos Olhares sobre a participação dos evangélicos nas eleições de 2022.